domingo, 19 de junho de 2016

No Bar

Seu Reginaldo estava naquela fase em que qualquer barman já pensa duas vezes se é hora de pular do balcão e tentar remover o cidadão dali. O homem não só enrolava a língua, como também cuspia de quando em quando, ao falar. Seu terno abarrotado e a gravata com nó afrouxado faziam o seu semblante lembrar o do personagem Tavares, do falecido Chico Anysio. Mas, naquela noite de terça, o barman em questão – Aníbal - não queria confusão com ninguém. Era terça, poxa. Ninguém mais entraria no bar àquela hora. Em trinta minutos, ele fecharia o bar e educadamente conduziria Tavares, ou melhor, o seu Reginaldo, para a porta do recinto. Simples assim. Além disso, Aníbal estava lendo um livro intitulado: “Quero Vencer, Não Sei o Que Fazer”, o que o fazia ponderar suas atitudes em horas como aquela. Nada como uma boa autoajuda para se manter calmo...

- Mais uma, meu filho! – ordenou em voz alta seu Reginaldo, interrompendo a pré-contagem do caixa que Aníbal fazia.
- É pra já, chefe. – Aníbal pegou a garrafa e preparou mais uma dose do uísque mais barato para o seu Reginaldo.
- Sabe que você é um bom rapaz, meu filho... Sempre fui com a sua cara!

Aníbal tentou desviar, mas algumas gotículas de saliva acertaram sua bochecha. Ele discretamente puxou um lenço do bolso e passou no rosto.

- Também acho que o senhor é boa pessoa, seu Reginaldo. Se fosse outro, eu já tinha posto a correr do bar.
- Puxa, obrigado. Um brinde a nós! Salut!

Aníbal só pegou um copo vazio e imitou o gesto do freguês, em respeito.

- Eu faço questão que você tome uma, e por minha conta, Arlindo! Você merece!
- Aníbal, seu Reginaldo. Tá aqui no meu crachá, ó. E obrigado mas, nunca bebo em serviço; vou passar essa.
- Não, não... Esse cabra é dos bons. Eu contrataria ele para trabalhar na minha empresa, com certeza! – seu Reginaldo falava para o lado, como se uma plateia de bebuns o escutasse naquele momento. Mas só havia os dois no bar.
- Se ao menos eu fosse mais novo... – continuou seu Reginaldo - ... um cara forte como você, assim, eu não casaria de novo. Ah, nunca. Isso é uma prisão, garoto. Um inferno. Já te disse outras vezes para não cometer o mesmo erro que eu, não disse?
- Sim, seu Reginaldo... E o senhor não lembra que eu já lhe contei, talvez umas três vezes, que sou casado, tenho uma filhinha de 6 anos... Por enquanto, estou feliz em meu casamento. Mas entendo que o senhor está há muito tempo casado, nem tudo dura pra sempre, a gente sabe como é...
- Sabe como é?? – seu Reginaldo se indignou que o cuspe saiu repartido em três direções desta vez. Aníbal sentiu na testa o molhado. – ...porque você não se casou com a dona Gorete. Ah, não. Essa você não ia aguentar nem um ano na sua cola. E eu que estou há mais de trinta com esse traste na minha vida. Eita cruz!!! – virando a dose, rapidamente Reginaldo esticou a mão com o copo vazio no balcão.
- A saideira, Anésio. Por favor, aí vamos tomar o rumo, o rumo da... do meretrício!

Além de trocar o nome de Aníbal o tempo todo, seu Reginaldo vinha com “expressões velhas”. Quem falava meretrício nos dias de hoje? No relógio da parede, intermináveis vinte minutos para o fechamento das portas. Aníbal segurou a onda, e serviu uma dose dupla para seu Reginaldo. Ainda disse:

- Por conta da casa. Para o senhor ir mais embalado para a sua casa, ou para a zona, seu Reginaldo.
- Uau!! Nossa, não se fazem mais barmans como você, Adílio. Infelizmente, não mais. Um brinde a nós, dois homens justos, que pensam o mesmo! Salut!
- É Aníbal, seu Reginaldo. Meu nome é Aníbal. Capisci?
- Hum? Pois foi o que eu disse, meu filho.

“Meu filho” de novo. Aníbal não sabia mais o que era pior: ter seu nome trocado ou ser chamado o tempo todo por aquele bêbado babão de “meu filho”; seu pai, se ouvisse aquilo, estaria se revirando no túmulo agora.

- Mas como eu ia dizendo, casamento é pior do que cadeia. Ou pelo menos, que cadeia de primeiro mundo. Aqui no Brasil já não sei... Tu já esteve dentro duma prisão, Adílson? Ver o que é que esses caras passam lá dentro? Sem contar que tu pode ser enrabado a qualquer hora. A prom... – essa hora Aníbal viu o cuspe caindo no próprio balcão, bem ao lado do copo do seu Reginaldo. - ...a promiscuidade, eita palavra difícil hein, a prom... a putaria nessa prisões é algo que não dá pra imaginar. Pensando bem, aí nesse caso até a Gorete é melhor do que prisão no Brasil...

Essa hora Aníbal saiu de trás do balcão e chegou ao lado de seu Reginaldo. Falou:

- Game over, seu Reginaldo. Vamos até a porta comigo...
- Mas, faltam quinze minutos meu filho... eu nem acabei de te contar ainda o que minha mulher me aprontou outro dia... – Aníbal já não ouvia mais nada. Não queria mais ouvir, e trocou o copo de vidro por um de plástico, dando-o na mão de seu Reginaldo. Agarrou-o firmemente pelo braço e foi arrastando o bebum até a porta.
- Isso é uma falta de respeito, meu filho! Se eu fosse mais novo, isso não ia ficar assim, hein? – Aníbal sentiu o cuspe de Reginaldo entrar dentro de seu ouvido. – ... olha que já fui pugilista nos anos 70, e dos bons viu garoto, eu...

Aníbal soltou o velho Reginaldo cambaleante pela rua, e apressou-se em trancar a porta. Não queria mais ouvir as lamúrias de um velho bêbado, nem ter seu nome trocado, muito menos ser chamado de filho. Sem falar nos cuspes, o que era aquilo?? Aníbal não conhecia a tal Gorete, mas já imaginava que a coitada da história era ela, e não ele. Finalmente contou o caixa do bar tranquilamente, enquanto lembrava do livro de cabeceira. Chegou à conclusão que, de fato, uma autoajuda não fazia mal a ninguém. Talvez ele precisasse de mais um livro para ler, pro caso de um dia lotado, com uma meia dúzia de Reginaldos à sua frente.

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