segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

E por aí?


A vida por aqui anda meio conto, nada de poesia.

Mas, pelo menos, não está crônica.





domingo, 21 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Svalbard

Me lembro como hoje, o dia em que Chico me disse:
- Estou indo morar em Svalbard, cara. Eu e a Mia.
- Onde?
- Svalbard, cara. O lugar mais ao norte do mundo.
- Não conheço...
- Olha no mapa. Mas olha bem em cima, lá pra cima da Europa. Tu vai ver tudo branco lá...
- Tu tá é louco, meu!
Essa foi a minha primeira reação. Isso não faz muito tempo - quatro, talvez cinco anos atrás. Pensei no frio. Não no frio que temos, por exemplo, lá no sul do Brasil; mas sim, um frio pior que o dos Estados Unidos quando aparece em notícia do Jornal Nacional. Daí perguntei:
- E que língua eles falam lá?
- Norueguês. Lá pertence à Noruega, Andrezão (assim, bem como ele costuma ainda me chamar). Mas todo mundo fala inglês, sem stress. E pagam uma grana pra quem for trabalhar lá.
Mesmo após questioná-lo por mais um tempo, ainda assim achei difícil de engolir a ideia de meu amigo morar num lugar meio que, sei lá, tão isolado.
Dito isto, decidi por seguir minha vida no Brasil.
Após alguns meses, Chico estava lá empregado, ganhando bem e vivendo feliz com sua cônjuge sueca. E volta e meia me ligava, contando-me novidades. Sempre excitantes. Nunca pra baixo, nem uma vez sequer. Eu ainda resistia:
- Mas e a noite polar cara? Tudo na maior escuridão... não bate uma deprê fodida?
- Bate nada, cara. O negócio é não esquentar. Depois vem o período de sol pra compensar. Três meses de noite, três meses de dia. Louco né?
"Louco é você!" pensava cá com meus botões. E seguia eu, vivendo minha vida abaixo de sol, calor úmido e muito suor no Brasil.
Um par de anos já haviam se passado quando, numa noite qualquer, nos falamos novamente. Desta vez, Chico disse-me que já tinha uma bela casa própria por lá. Não só isso, mas ele e sua escandinava viajavam tudo o que podiam e mais um pouco. Não era à toa que ele fincava sua bandeira no chão quando falava em Svalbard:
- Aqui é minha casa, cara. O meu lugar. Moro numa baita casa aqui, com tudo. No Brasil, não teria nem uma bicicleta própria, eu acho.
Novamente, uma aura pessimista, provavelmente com uma pontinha de inveja, teimava em emanar de dentro de mim; aí lhe perguntei:
- Mas, me diga uma coisa amigo velho... compensa trabalhar um monte só pelo dinheiro...???
Aí ele me contou que estava abrindo a sua própria empresa por lá e, pasmem, fazendo o que ele mais gostava na vida: fotografando e filmando. Seus panos de fundo? Montanhas cobertas de neve, geleiras, ursos polares e (a preferida dele) a aurora boreal. Depois que soube das últimas novidades, parei de nadar contra a corrente. Deixei o negativismo de lado - e se esse ficou em algum lugar, foi lá no Brasil - e me mudei de mala e cuia para cá, há exatos 8 dias e algumas horas atrás. Ao teclar estas últimas palavras, ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Chico bateu à minha porta. Já era 1 da madrugada. Apressado, foi logo dizendo:
- Corre Andrezão, desce logo. Tá bombando uma aurora no céu. Vamos lá ver e fotografar ela, agora!!!

Botei um ponto final na história e me mandei pra rua com ele...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A Mulher e o Gorila

... e o segredo é a sincronização. A mulher e o gorila têm que estar em marcações certinhas, para que a imagem de um sobreponha a do outro no reflexo do vidro. Só não é um truque mais velho do que o circo porque a lâmpada foi inventada por Thomas Edson somente no século 19, meu camarada. Mas é claro que é necessário ter luz! Eu te explico o funcionamento: em um cubículo fica a garota, trajes sumários, bem sensual, em outro, num ângulo de 90 graus e de frente para a plateia fica o cara fantasiado de gorila. No meio, perfazendo um ângulo de 45 graus, um vidro. No mais, basta um bom iluminador. No início, o público vê a imagem da mocinha de biquíni refletida no vidro. Quando a luz vai se apagando e simultaneamente vai se acendendo a do cubículo do gorila tem-se a impressão que a menina está se transformando no primata. É... primata. Um lance de escala zoológica, não estudou isso na escola? Desculpe, não quis ofendê-lo. Mas, onde é que eu estava? Ah... depois que o público está vendo só o gorila, remove-se o vidro, ele rompe o cadeado da jaula, sai correndo atrás dos expectadores, é contido pelo domador e o número acaba. Acho que essa gente que mora no cu do mundo — quando aparece um cirquinho mequetrefe é um acontecimento para a cidade — acredita realmente na mulher-gorila. Povinho ingênuo, hein? Como é que eu sei tudo isso? Fui o gorila durante anos em um espetáculo circense, ora.
Calor aqui, né? Que espelunca. Bebida horrível, música mais brega que Reginaldo Rossi. Mais uma branquinha? Por minha conta. Obrigado por me ouvir. As pessoas perderam a paciência de escutarem umas as outras. Sim, sou novo na cidade, difícil de me enturmar. Como eu ia dizendo, fiz o gorila durante um tempo no Circo Irmãos Graziani cujos proprietários na verdade eram dois paraguaios que usavam o nome de um atacante perna-de-pau da seleção italiana de 82. Vida boa, comida mais ou menos, trailer para dormir e um salariozinho para gastar na zona de cada cidade onde parávamos. Trabalho fácil. Bastava fazer uns ruídos de gorila, socar o peito e correr atrás dos idiotas. O que estragou foi quando a Giovana deu um chilique, deixou o circo e contrataram uma nova mulher-gorila. Mulherão, altona, cabelão descendo em cascata pelas costas, pele de marfim, peitões de americana de filme pornô e uma bunda incomensurável, bunda brasileira, carnuda, redonda, algo divinal. Gamei na hora. Foi uma merda. Todo dia ela de biquíni rebolando na câmara ao lado e eu de fantasia de gorila, transbordando tesão por todos os poros. Ela era safada, me dava trela e depois fugia, escorregadia feito um peixe ensaboado. Não sei por que esse negócio de peixe ensaboado. É verdade, fico divagando, fugindo da narrativa. Bom, fiquei meses nessa lenga-lenga, me declarei, disse estar apaixonado, o diabo a quatro. O máximo que ela me deixava era tocar naquelas mamonas assassinas, mas por cima do sutiã do biquíni antes da apresentação e mesmo assim tinha que pagar vinte contos para a ordinária. Isso, uma grandíssima piranha, você tem razão.
Meu mundo ruiu quando eu descobri que ela era amante de um dos Irmãos Graziani, o Paquito, se eu não me engano. Eram gêmeos idênticos. Envenenado de ciúmes, julgando-me traído toquei fogo no circo, literalmente. Um prejuízo enorme. Não, não morreu ninguém. Apenas dois pôneis e a pombinha do mágico. Do circo, não sobrou nada para contar história. Julgado, peguei cinco anos de tranca. Saí com dois. Réu primário, bom comportamento. O processo civil ainda corre na justiça. Temo pagar milhões de indenização para aqueles italianos de araque com sotaque espanhol.
Agora, estou aqui, dentro desse cabaré infame, com a infeliz ali, razão da minha perdição, ex-mulher-gorila dos infernos, pendurada no poste, se rebolando para os clientes. Se chama pole dance? Esquisito. É inglês? Qual é o nome de guerra da vagabunda? Gigi? No circo se chamava Laurinda. Sei lá se esse é o nome verdadeiro da desgraçada. Soube que ela está de rabicho com um mágico, um tal de Mondrique, de um circo mais chinfrim que o Irmãos Graziani armado por estas bandas. Quer saber? Pego mais trinta anos mas me vingo desta mulher. Dizem que o novo macho dela tem poderes sobrenaturais? Pago pra ver!
Obs: terceiro conto publicado na antologia "Respeitável Público - Histórias de Circo e Outras  Tragédias" - Editora Penalux

O Julgamento




Estava sentado no banco dos réus, disperso, com o olhar preso ao chão.

Que surpresa tive eu quando vi a mim mesmo no alto da tribuna determinando minha sentença:

- pena capital a todos os sabotadores da própria felicidade!

 nossos olhos úmidos entrecruzaram-se uma última vez.

 voltei a baixar a cabeça.

e pensei:
é justo.


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O Queijo

A última safra tinha sido o ponto final de uma vida inteira dedicada à terra. Dona Eulália, Seu Bento e o filho Zeca tinham agora que encarar o rumo da cidade em busca de serviço. Qualquer serviço. A praga devorara o milho até não restar nada. Dava a impressão até que, em seu voraz apetite, a praga devorara a si mesma inclusive, numa violenta autofagia. Os poucos pertences da família, em trouxas, já estavam arrumados para a partida na primeira hora da manhã. Pegariam o caminho com o carroceiro que levava as verduras à Santana. Deram três contos por cabeça por um transporte lento e judiado. Aquela janta seria a derradeira em casa, com os parcos recursos que sobraram da família. Dona Eulália chegou do mercado com dois pacotes, o habitual de farinha e outro que causou estranheza a Seu Bento: grosso, bem embalado em papel branco, amarrado com uma cordinha. Zeca também parou pra olhar, curioso do que seria. Dona Eulália se adiantou: - Trouxe a farinha pro mingau salgado. E mais uma coisa. Como é nossa última refeição aqui, trouxe um queijo. O dinheiro que sobrou deu pra um pedaço modesto, mas é do melhor. Dá uma fatia grande pra cada um. Nisso ela foi desnudando o pacote, abrindo com delicadeza a cordinha, retirando lentamente o papel. O cheiro do queijo chegou ao olfato dos três, encontrando a fome que traziam consigo, uma fome que não era de ontem somente, era de toda uma vida desvalida e aliviada tão somente no mínimo. Foi então, sem mais, que o demônio da cobiça e da discórdia se instalou entre os três. Cobiçaram aquele queijo, não uma lasca apenas, mas a sua totalidade. Naquela hora, eles quiseram o queijo com o desejo mais egoísta que se pode desejar. Eles desejaram com raiva e beligerância em seu íntimo. Fez-se porém silêncio em suas intenções; um não sabia da ameaça que o outro representava por uma porção a mais daquele manjar, que parecia ser a última fatia digna de uma vida que acabava no campo para virar algo diferente, algo pior do que já fora. Quietos, faziam planos para terem o prazer de usufruir sozinhos do deleite do queijo. Naquele momento, não importavam consequências, o que viria a seguir. Importava apenas se apropriar sozinho do manjar, saciar o desejo ardente, tão somente. O resto era o resto. Dona Eulália se achegou ao velho fogão a lenha para preparar o mingau salgado. Zeca pensava numa forma de pegar o queijo e sair dali correndo. Seu Bento procurava a arma pra ameaçar o filho e a esposa enquanto comeria sozinho o pomo da discórdia. - Vamos sentar pra comer – disse Dona Eulália, servindo a porção de mingau de cada um. Os dois homens comiam lentamente, calculando o momento certo de agir para apossarem-se do queijo. Foi quando uma sensação estranha, de mal-estar, tomou conta deles: num instante estavam caídos no chão, convulsionando entre a vida e a morte. – Aquele veneno de rato viera a calhar – pensou Dona Eulália. E sentou-se diante do queijo com um ar tranquilo, apreciando aquela dádiva com todos os sentidos, lentamente. Uma refeição nobre como nunca tivera em toda sua vida. Depois tomaria também sua porção de mingau.