sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Convidado Flávio Sanso



O homem é bicho de não ser só

Havia no sertão um lugar desabitado. Tão ermo, enfadonho e desolado, que por lá ainda se esperava a chegada de Cabral. Fazia silêncio absoluto, a ponto de primeiro amedrontar e depois enlouquecer até quem tenha predileção pelo sossego. Pois assim parecia que o tempo não passava, ou nem sequer existia. E só se notava que ele existia e passava, por causa da escuridão da noite que rendia o claro do dia. E vice-versa. Na falta de alguém que mandasse, quem reinava mesmo era o sol, que no alto da sua autoridade esturricava tudo, fazia o chão arder e não é qualquer nuvem que ele deixava passear sobre a paisagem. Não tinha culpa. Afinal, se nasceu quente, dourado e explosivo, não se queira que ele pudesse refrescar.

Mas o homem é bicho teimoso.

Seja em solo árido ou pedregoso, sempre há de aparecer pessoa com ânimo de fazer morada, que nem mato, capim e maria-sem-vergonha, que se dão a brotar em qualquer canto. E do nada surgiu uma dupla, que parecia há muito tempo errante. Por falta de olhos que os cercassem, ninguém os viu chegar, a não ser que os calangos possam ter a qualidade de testemunha. Na falta de melhor nomenclatura, convém que Alto e Baixo lhe caibam como alcunha.

Arquitetaram choupana sem teto, de modo a enxergar o céu escuro antes de dormir. Tentavam plantar de tudo, mas só comiam o pouco que a terra se dispusesse a produzir. E não era raro que faltasse alimento. Quando era assim, não sobrava história que calango pudesse contar. Tudo era questão de se adaptar, e da adaptação chegou-se à rotina, que evoluiu para a afeição ao lugar. Se trabalho é ocupação, o Alto e o Baixo trabalhavam até o cansaço dar aviso de chegada, e era menos pela sobrevivência que precisavam manter, e mais para afastar o tédio. Alto e Baixo levavam uma vida de viver só por viver, o que para eles não deixava de ser o melhor sentido que a vida deveria ter.

Diferente das nuvens, o vento, sempre ligeiro e expansivo, circulava livremente sem que fosse incomodado, e isso em decorrência da artimanha de se aproveitar da sua falta de aparência. E num dia em que estava especialmente disposto, levou para lá um objeto diferente que planava suavemente, dançando ao sabor de redemoinhos. O Baixo estranhou a visita, e, com um pulo certeiro, apanhou a coisa suspensa. Quando se deu conta do que se tratava, pôs-se a esbugalhar os olhos, com sintoma de hipnose aguda. Segurava um retrato do mar.

O Baixo passou a carregar o retrato para onde quer que fosse. Bem aos poucos foi nascendo reflexão persistente. Uma ideia tomou de assalto seu pensamento. Era tal como coceira. Ia e vinha sem parar e cada vez que voltava aparecia com mais sustância. Passou a andar arqueado com o peso da perturbação. E num dia, muito de repente, postou-se em paralisia, inerte como tronco enraizado. Sacou o retrato, posicionou-o à sua vista e, sem aviso do que ia fazer, deu um grito de criar eco, ecos e mais ecos, esvaziando todo o ar que tinha guardado nos pulmões. “Eu não fico mais aqui.” “É na direção do mar que eu quero ir”. Partiu com urgência, sem fazer aceno de despedida.

O Alto não demonstrou reação de se ter abalado. Resignou-se com a imposição do destino, exibindo indiferença que quase esbarrava na altivez. Logo pensou que, se antes eram dois e agora era um, mais comida haveria de sobrar. Deu de ombros e se voltou ao que lhe era rotineiro.

Mas o homem é bicho de não ser só.

Depois que o tempo se arrastou, dando mostras de que a coisa mudou, o Alto se aborreceu de só ter sua consciência para prosear. Pior é que já não havia quem escutasse sua reclamação do calor. Não tinha paz para dormir, tamanha era a aflição de abandonar o corpo desacordado em redor deserto. Nem mais se deleitava com seu prazer de matar sede com água de moringa. Perdia a fome. Sim, tinha desinteresse de comer sua parte da comida e a outra parte que também lhe cabia porque sobrava. Tornou-se dono de tristeza esquisita, e sabia bem a razão. Com o sacrifício dos joelhos, tombou no chão de terra batida e começou a espirrar lágrimas em profusão. Chorou feito criança pirracenta, porque a solidão é coisa que não se aguenta sem chorar.

Enquanto isso, lá pelas bandas do litoral, o Baixo era pessoa transformada e já flertava com o deslumbramento. Conhecia gente, sorvia do coco as delícias da água adocicada, saboreava carne de peixe e salgava-se em banhos demorados.

Mas o homem é bicho inquieto.

Caminhando pela praia, o Baixo desequilibrou-se, tropeçou e caiu de um jeito que foi natural a risada se espalhar. Com o rubor da humilhação, levantou depressa, e olhando para a areia bradou com irritação: “mas que malícia é essa de afundar meus pés? Lá de onde eu vim, tinha a confiança de pisar firme no chão, sem o cuidado de evitar o infortúnio de cair.” E depois disso, o Baixo começou a exercitar a comparação. De um lado a areia mole e de cor aguada, do outro a terra dura e de cor marrom-forte, quase avermelhada. Daí se vê que o Baixo ia pelo caminho de cultivar recordação do seu ponto de origem, e é sabido que amontoar lembrança é querer chamar a saudade, que quando chega sabe muito bem marcar presença. É o que dizem por aí: o mar causa enjoo, e o Baixo enjoou do mar.

O sol já se punha, porque até quem tem poder de mando merece descansar. No horizonte pintado de cor-de-abóbora, o Alto avistou a figura do Baixo se aproximar. Os dois correram um contra o outro e se abraçaram com aperto forte, e foi tão forte que rolaram no chão, levantando nuvem de poeira. Aquilo foi de dar nó em garganta de calango curioso. Tudo voltou ao tempo de antigamente.

Mas o homem é bicho rancoroso.
Dizer que tudo voltou ao tempo de antigamente é querer dar conclusão rasa a questão profunda. O Alto tinha no seu íntimo algo desarrumado, reclamando ajuste premente. Memórias sobre a desgraceira do desamparo eram como filme de reprodução repetida. Uma voz interior atiçava com injúria irritante: “tonto, frouxo e paspalhão”. Essa mesma voz, teimosa que era, passou a cobrar postura de revide. Por aí é que a inteligência do Alto forjou julgamento fundado no preceito de que cada qual tenha que dar paga pelo mal que causou. A sentença estava pronta e acabada. O Alto partiu sem rumo e sem previsão de parada. Deixou para trás o Baixo, que estava condenado a experimentar a mesma dor da solidão que um dia provocou.

O Alto seguiu caminho com passo acelerado, chutando pedra atrevida que parasse à sua frente. E desse modo percorreu trilha alongada, até quando uma segunda voz anunciou advertência: “se o Baixo inaugurava solidão, por causa de condenação, o Alto já ia para a sua segunda vez, e por causa de orgulho ou ausência de perdão.” Então, começou a andar em marcha diminuída. De resoluto passou a vacilante. Agora já quase nem andava. Braços jogados para trás em entrelace nas costas e olhar fixo nos rasgos do terreno. Por ali se viu em grande dilema que precisava solucionar. Parou, fazendo menção de se virar.

Porque o homem sempre será bicho de não ser só. 



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