quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Convidado Cacau Oliveira

Gosto de fotos inusitadas, destas que a gente fica viajando na situação, no clima que influenciou aquela atitude ou pose.... Mas o que mais gosto nas fotos é a sua autenticidade, sua forma simples de dizer ao mundo que aquele momento ficou marcado. O riso espontâneo, a expressão séria ou o contido jeito de mostrar-se pelo olhar.
Fotos sempre marcam um momento e uma energia. Por isso nem sempre gosto de posar para fotos sorrindo, por que nem sempre a minha alma assim está. Ela pode estar em uma perfeita escuridão num dia ensolarado em um lugar magnífico. Minha alma requer palavras de contentamento, anseia muito mais por isso do que o riso forçado a amarelar numa foto sem vida.
Pode parecer difícil compreender, e de fato assim o é - mas tudo que eu quero ao retratar uma foto é o seu melhor dentro da beleza que se apresenta naquele instante. E a beleza pode ser séria, ousada, sexy, de perfil ou de olhos baixos...
Aquele instante na foto
  Em tudo ou em todos os lugares em que esteja meu foco, meu olhar, que tudo faça sentido naquele instante é perfeito e belo porque assim se apresenta em seu todo. A dor é bela porque ela assim se mostra em seu todo e em seu todo é real e única. A velhice é bela, porque em cada ruga há uma vida contida em seu traço e cada traço faz parte de um todo que também é único... Tudo é especial ao olhar de quem vê a vida em sua plenitude.
Ao traduzir a luz daquele olhar mágico para um momento especial a ser eternizado em uma foto, vejo minha escuridão íntima, minha película a ser revelada, e aquilo que não se pode ver passa a ser real, definido e como um raio de sol que rompe a vidraça da janela vai formando um fio de luz e mostrando pequenas partículas de pó...E elas dançam!
A escuridão interior da gente deveria dançar no escuro de nossas almas. Deveria ser como os amantes que dançam com os olhos fechados ao som do pulsar de seu coração. E assim, ao ser preso em uma foto nosso momento seria aquele de olhos fechados e coração aos saltos. Numa explosão intensa e inebriante, avassaladora e profunda de nossos sonhos, desejos e verdades. E nossas verdades nem sempre estão preparadas, prontas para a melhor foto. Pode estar de olhos arregalados, marejados, expressão assustada, séria ou com aquele olhar indecifrável e doce.
Gosto de tirar fotos. Mas gosto muito mais de ver que nelas há um pouco de mim e do que sou. Gosto muito de tirar fotos de lugares, coisas e pessoas que amo, mas gosto muito mais de estar em paz comigo, em minha escuridão interior dançando! Deixando minha alma expressar o que não se define, mas se revela em todos lugares, em todas as formas e acima de tudo. Em tudo.
Linda noite.


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Cacau Oliveira
http://cauoliveira.blogspot.com.br/


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Infância

-Entrem.
-Boa tarde doutora. Essa é Elisa, a menina da qual falamos ontem...
-Sim, sim, mas sentem. Olá Elisa, como vai?
-Oi tia...
-Luiza, tia Luiza. Completou a médica com um sorriso nos lábios. A sua tia Ana me contou que você é a menina mais esperta do orfanato! E tem apenas cinco anos, é verdade?
-A tia disse isso? Os olhos da menina brilharam. Eu sou sim. Minha mamãe sempre dizia isso.
-Como se chama sua mãe?
-Não me lembro, não senhora. Só lembro que ela gostava muito de mim. Um dia me deu uma boneca Xuxa enorme.
-Verdade? Então sua mãe devia gostar muito de você.
-Ah, gostava sim. Ela sempre disse que eu era a mocinha da casa.
-Você ajudava sua mãe nas tarefas?
-Claro. Eu cuidava da minha irmãzinha para a mamãe trabalhar.
-E sua irmãzinha dava muito trabalho?
-Não, era boazinha. Só quando tava doente. Aí ficava chorando no berço.
-Ela não dizia o que doía? A menina deu uma risada que ecoou pela sala.
-Ela não falava Tia, era bebe. Não andava, não falava e fazia coco na fralda.
-Ah, bom. E você trocava a fralda dela?
-Claro que sim. Eu aprendi com minha mamãe.
-Onde está sua irmãzinha agora?
-No céu. Ela morreu de doença.
-Que tipo de doença?
-Ninguém sabe Tia. Ela tava gripada. Minha mamãe deixou remedinho pra eu dar pra ela. Eu dei, mas não adiantou. Ela dormiu e não acordou mais.
-Assim? Morreu dormindo? Ninguém percebeu?
-Claro que percebi Tia, não sou boba. Ela chorou e eu dei remédio pra passar a dor. Mas não adiantou, ela chorou uma porção de vezes e eu dava o remédio pra ela parar de chorar, mas ela dormiu e não acordou mais. Depois aquela droga de juíza me trouxe pra cá. Acho que pensou que eu não cuidei dela.
-E você cuidou?
-Claro. Mas o remédio acabou...





(contos de Me Morte)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

" A Carta nas Quatro Estações "

Tenho o privilégio de poder não distinguir dias da semana de fins de semana. Mas sei que todos os dias são dias de trabalho. Não um trabalho de horas fixas, mas de compromisso com os meus objetivos.
 Apesar de não ter a oferta dos grandes centros urbanos, tenho aquilo que me faltava; o encontro sistemático com a mãe natura, onde reflito sobre a minha vida, e aquilo que pretendo com ela. Ainda mesmo agora me levantei, pelas 4:30 horas, tomei um duche bem quentinho, fiz um café forte, e sem imposição externa à minha vontade, estou escrevendo-te, porque é assim que quero que as coisas aconteçam. Não é fácil viver assim, abdicar de muita coisa, que por vezes até dava jeito ao dia a dia, mas como muita gente o diz: - ”não se pode ter tudo”.
Uma coisa muito importante, e talvez essencial, eu tenho; uma paz interior, que suporta todas as minhas adversidades. Já tive ambição de ser rico, dar a volta ao mundo, ou então viver na ostentação, mas um sinal, talvez do Supremo, me fez ver a luz da razão, e sentir, quanto pequenino nós somos no universo. O legado que deixo, neste mundo terreno, são os meus escritos, fruto do meu trabalho criativo, ou não, tu o podes dizer, amiga. Deus assim quis que fosse, não ter filhos, não foi nenhum drama para mim. Foi algo que devia estar premeditado para mim. Agora vejo, que a frase religiosa: “ Deus escreve bem, por linhas tortas”, assenta que nem uma luva em mim…

Capítulo XXIV
excerto
Quito Arantes

JURAS

Estou chorando num canto
As dores do coração...
Que perdeu o real encanto
Depois de ouvir o teu não;

Lágrimas cobrem o chão
Nas madrugadas escuras...
Todas mortas na paixão
Que alimentava tais juras;

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A vaquinha dos petistas




José Genoíno é mentiroso ou incompetente?
Pergunto isso ao me deparar com a notícia de que correligionários criaram um site para arrecadar dinheiro, a fim de que o ex-deputado condenado pague a multa de quase 500 mil reais por conta do Mensalão. A família de Genoíno alega que ele não tem o dinheiro suficiente para pagar esse valor, além de possuir apenas um apartamento em seu nome.
É aí que entra a pergunta acima.
Acompanhem-me: José Genoíno, durante mais de 20 anos, foi deputado estadual por São Paulo; exerceu outros cargos no decorrer de sua vida pública, então, eu pergunto: o que Genoíno fez com essa bolada? Seus correligionários me farão rir se alegarem que o petista repassou esses valores para obras sociais ou mesmo para o partido.
Como entender que, em 30 anos de carreira, sempre com expressivo salário, ele não foi capaz de adquirir bens, para usufruto e investimento? Que não foi capaz de investir na poupança ou fundo de investimentos? Ou o ex-deputado é um mentiroso, que não quer tirar dinheiro do próprio bolso para pagar a multa, ou realmente não possui tal quantia; nesse caso, podemos inferir que, se é incompetente a ponto de não oferecer um bem estar a própria família depois de três décadas, o que deixou de fazer pelo Estado que o elegeu nessas décadas.
E então, qual a sua opinião: o ex-deputado é mentiroso ou incompetente?

.......................

Essa cronicazinha já está desatualizada parcialmente. José Genoíno conseguiu pagar sua multa; mas campanhas semelhantes serão criadas para Delúbio Soares, José Dirceu e João Paulo Cunha. Mudam-se os personagens, não a surrealidade da situação.

domingo, 26 de janeiro de 2014

O Passo Seguinte - Parte I

Era uma noite muito quente, o que contribuía bastante para que o bar localizado no bairro Santa Mônica estivesse lotado. O calor foi supostamente o principal motivo para que o grupo de amigos se encontrasse ali. Eram seis no total.  Conversavam todos, muito alto, na verdade nem todos, pois uns pareciam serem mais narradores do que outros, mas conversavam assim porque o barulho no bar era muito alto e não havia outra maneira para que pudessem se comunicar.
Sentado-se à mesa ao lado estava Nicolas, bebendo sozinho. Como as mesas estavam muito próximas e de todos os sons que ele podia captar no bar o mais interessante parecia ser a conversa daqueles jovens, começou a escutar atentamente o que falavam.
- Cara, é absurdo essa questão da Copa. Vocês viram o vídeo daquele despejo? A polícia desceu o cacete em todo mundo. Puta que pariu! Mas eu boto fé demais que esse ano o bicho vai pegar, não sei não se vai ter Copa tão fácil assim. O que vocês acham? – Quem dizia isso era um rapaz negro, bastante magricelo e alto, com o cabelo estilo “black Power". A expressão do seu rosto transparecia que aquele assunto sobre o qual estava discorrendo era bastante grave, dava para ver isso nas contrações de sua face. Gesticulava com os braços e as mãos em movimentos bastante enérgicos e firmes. E no fim de cada frase terminava sempre por bater a mão direita sobre a palma da mão esquerda aberta.
A roupa desse rapaz era bem parecida com as dos demais rapazes que estavam na mesa: camiseta colorida meio amarrotada sem estampa, uma calça jeans e um “sapatênis” surrado. A diferença era a cor das camisetas e dos sapatos, a dele, no caso, era uma camiseta laranja.
- O foda é que aqui em Uberlândia não é cidade sede da Copa. Se fosse, eu acho que a gente podia tocar o terror aqui também – dizia outro rapaz de camiseta roxa. Este fazia movimentos menos bruscos para expressar sua fala do que seu colega.
- Ah, mas mesmo que aqui não seja, eu boto fé que a gente pode tentar ir pra alguma cidade sede e participar das manifestações, dá pra ficar na casa dos nossos amigos. – Respondeu uma moça, bastante magra, de cabelos loiros um pouco ondulados e pele clara. Ela vestia uma blusa cavada e muito colada ao seu corpo e com um decote que destacava seus seios, mesmo que pequenos, e na parte de baixo um saião estilo hippie que em boa parte do tempo escondia as sandálias de couro que calçavam seus pés. Uma outra moça vestia algo bastante semelhante, mais uma vez o que se alterava eram as cores das roupas, somente a terceira que mudava um pouco o estilo, trocando o saião por uma calça jeans e as sandálias por um tênis. O que se destacava nessa terceira era uns óculos quadrados bem grandes e de um vermelho muito chamativo.
Nicolas não só escutava a conversa, mas reparava em cada detalhe desses jovens, nesse estilo das roupas, na postura deles, na maneira como gesticulavam para se comunicarem uns com os outros. Reparava que parecia ser um jeito agressivo e impositivo. Pensava “o que é que eles vão fazer com toda essa raiva?”. Sem deixar de prestar atenção neles, sacou um maço de cigarros amassado do bolso da camisa e puxou um cigarro tão amassado quanto o maço e colocou-o na boca e perguntou para os jovens se eles tinham isqueiro. Prontamente a moça de estilo hippie, não a loira, mas uma morena que tinha os cabelos cortados bem curtos e um corpo mais destacado do que o da outra esticou o braço em direção à boca de Nicolas e ascendeu o cigarro com seu isqueiro.
- Oh! Obrigado, nem precisava de tanta gentileza.
- Que isso moço, de boa – respondeu ela dando uma risadinha antes de começar a frase.
A garota fumava um cigarro de palha e, depois que respondeu, lançou um olhar mais atencioso em direção à Nicolas para observá-lo melhor. Ela avistou um homem que provavelmente já deveria estar na casa dos quarenta anos, cabelos castanhos bem finos e em grande quantidade, partidos de lado, moreno claro que usava uma camisa verde escura, calça jeans já com a cor desbotada presa por um cinto de couro preto e nos pés uma botina um pouco gasta. Olhando as vestimentas do homem, pareceu a ela que fosse desses funcionários públicos que estava na base da pirâmide da hierarquia e que já estava bem cansado por todos os anos de dedicação ao serviço, porém, sem grandes recompensas. Mas quando olhava em seu rosto percebia algo diferente. A expressão era bastante séria, mas tal seriedade não parecia advir do cansaço aparente dele, mas sim porque estava imerso em pensamentos profundos, sentado ali fumando o seu cigarro, foi também nesse exato momento onde percebeu que esse homem estava atento à conversa na mesa deles. Porém, ao mesmo tempo parecia conseguir escutar tudo o que diziam e ainda continuar imerso nos seus pensamentos. E que pensamentos eram aqueles? Será que eram interessantes? Tudo isso estava deixando Sônia muito curiosa.
- Você não acha cigarro de palha muito forte? Não que meu Marlboro vermelho também não seja, aliás, talvez essa porcaria que estou fumando seja muito pior – Nisso Nicolas tirou seu cigarro da boca e ficou olhando-o – Mas não sei, esses palheiros parecem um soco no pulmão quando a gente levanta e, industrial por industrial, eu to preferindo as indústrias de grande porte – Depois disso, soltou uma risadinha curta e maliciosa.
- Ué, como assim? Você prefere as indústrias de grande porte pra que? O senhor vai me desculpar, mas só se for pra morrer mais rápido.
Nisso Nicolas pareceu um tanto sombrio e não respondeu de cara a pergunta da menina, parecia pensar sobre o que ela lhe falou. Todos os jovens da mesa ficaram olhando pra ele na expectativa de uma resposta e pareciam até um pouco assustados pelo tom que a garota dos óculos vermelhos usou.
- Morrer mais rápido. Talvez realmente seja isso, morrer mais rápido – Respondeu Nicolas quebrando o silêncio – Se todos nós, dia após dia, nos definhamos no vício, porque tentar burlá-lo? Os alcoólatras que encham a cara da cachaça mais barata, os fumantes que fumem o pior cigarro que exista, um que queime a garganta e o pulmão. Felizes dos maconheiros que nunca morrem de overdose, talvez o máximo que aconteça com eles seja morrer de tanto comer, que se afoguem em muita gordura saciando suas respectivas laricas.
Não se sabe se essa última frase proferida por Nicolas realmente foi uma piada, mas ela pareceu bastante cômica para os jovens e eles desataram a rir escandalosamente.
- Mas por que riem? – disse Nicolas um pouco irritado – Isso é uma questão muito séria meus pequeninos. Qual é o nome de cada um de vocês? – O tom em que proferiu a frase cortou instantaneamente o riso.
- Carlos – disse o de camiseta laranja.
- Beatriz – a moça loira.
- Eduardo – o de camiseta roxa.
- Manoel – um terceiro rapaz que estava de verde.
- Júlia – a dos óculos vermelhos.
- Sônia.
- Muito bom, muito bom, pequeninos, o meu nome é Nicolas, encantado por conhecer vocês – esse novo tom rebuscado que assumira fazia com que os jovens soltassem risinhos de canto de boca, contidos para que não o irritassem mais uma vez e para não ficar tão escancarada a vontade de debochar que tinham.
- Mas por que o senhor tá chamando a gente de pequeninos? O senhor é louco? – proferiu Júlia mais uma vez uma de suas frases fortes.
Então Nicolas soltou uma forte gargalhada e disse:
- E você não é? Desculpe então chamar vocês de pequeninos, mas é que, de fato, são e nem percebem. Enquanto a minha loucura, ela não difere de várias outras que se encontra em algumas páginas de uns bons livros.
Tentando disfarçar Beatriz se aproximou do ouvido de Carlos e cochichou:
- Falou então o maluco com mania de grandeza – O rapaz respondeu somente com mais uma risadinha contida.
- No fim das contas, todo mundo é – comentou ironicamente Júlia.
Parecia ser ali o fim da conversa entre ambos, os jovens voltaram seus corpos para o centro de sua mesa para retomar a conversa em que estavam e Nicolas bateu o cigarro para derrubar a cinzas que como ele ficou muito tempo sem fumar já estavam ficando maiores do que o próprio cigarro. Serviu mais um copo de cerveja para si e retornou ao que fazia antes, no caso aos seus pensamentos e a escutar a conversa das moças e rapazes da mesa ao lado.
Reparou também que sua cerveja estava acabando, decidiu tomar numa só golada tudo que tinha no seu copo para poder terminar o resto da garrafa e pedir outra. Ao virar o copo e batê-lo na mesa, levantou-se e foi ao banheiro. Chegando lá tinha dois caras na fila.
- Porra! Eu tinha que ter pedido outra cerveja. Foi pra isso que eu levantei e não pra ir ao banheiro. Vou lá pedir. – saiu então da fila e deu dois passos em direção ao balcão, mas parou e girou seu corpo em cima do calcanhar direito tornando a colocá-lo em direção a fila do banheiro.
- Mas se eu sair da fila pra ir pegar outra cerveja, provavelmente, quando voltar, a fila vai estar muito maior. Merda de indecisão! – enquanto sua mente não chegava a uma conclusão, ficou parado ali mesmo e passou um olhar naquela parte interior do bar descobrindo assim da onde surgia tanto barulho.
A composição das mesas, em sua maioria, era bastante parecida com a mesa dos jovens que estavam sentados ao seu lado. A maioria que estava ali era daquela mesma faixa etária, mudavam os estilos das roupas, mudavam os temas das conversas, mas uma característica principal permanecia: todos tentavam gritar mais alto do que os outros com a necessidade extrema de despejar todas suas angústias e pérolas de exibição, mas poucos paravam para ouvir essas mesmas questões.
- Puta merda! Desde quando o mundo ficou tão homogêneo? Eu sei que já tem muito tempo, mas parece que a coisa tá cada vez mais próxima do buraco. E que música é essa? – a música vinha de umas caixinhas que ficavam espalhadas por todo bar, no caso estava tocando uma música famosa contemporânea do estilo sertanejo universitário que dizia respeito sobre como os homens “pegariam” as mulheres na “balada”. Nem todos ali no bar pareciam gostar daquela música, mas a canção só contribuía para que todos falassem mais alto ainda.
Quando Nicolas se voltou para a fila do banheiro, viu que ainda tinha uma pessoa na sua frente e pensou “será que ela cortou fila de mim? Ou será que nem passou tanto tempo assim? Ah, que se foda o banheiro! Qualquer coisa eu “mijo” na rua. Saiu da fila e seguiu em direção para retornar a sua mesa, porém, caminhado uns cinco passos adiante, trombou com uma garçonete e aproveitando a ocasião pediu mais uma cerveja.
Chegando olhou para a mesa daqueles jovens e já pareciam estar bem “altos”, os rostos mais avermelhados, os gestos de todos, mesmo que em proporções diferentes, mais rápidos e agitados e as gargalhadas altas aconteciam com maior frequência. A conversa seguindo o fluxo de todo bar já acontecia aos gritos também.
- Mas, afinal, eu demorei ou não demorei tanto tempo lá dentro? Não é possível, ainda não deu tempo dos pequeninos estarem bêbados. – nisso reparou que um deles estava com o pé em cima de sua cadeira – Qual é mesmo o nome desse moleque? Manoel! Sim, Manoel. – Manoel era um rapaz moreno e robusto, não muito alto, de estatura mediana, porém era o mais sorridente de todos, tinha um sorriso bem largo, parecia que sua boca tinha o dobro do número de dentes e suas piadas apesar de bastante chulas, de tão sinceras que eram pareciam divertir muito todos ali.
- Tira o pé da minha cadeira, fedelho – disse Nicolas.
- Olha o tanto que esse velho é louco, uma hora ele tá chamando a gente de pequenino, de repente já volta tirando onda com a nossa cara – Respondeu Manoel, tirando o pé da cadeira de Nicolas e fazendo os outros rirem com esse comentário. Depois das risadas, todos deram uma olhada para Nicolas e fizeram um gesto pequeno com a cabeça, balançando para um lado e para outro, demonstrando assim uma mistura de negação com escárnio.
Nicolas sentou sem olhar e sem dar consideração alguma para os jovens. Tirou novamente o maço de cigarros do bolso, deu uma batida por debaixo dele com um dedo e um cigarro pulou de lá e apanhou-o diretamente com a sua boca. Nisso puxou uma caixa de fósforos do bolso esquerdo da sua calça e com muita classe protegendo o cigarro do vento com as mãos ascendeu. Aquilo tudo pareceu uma cena de filmes de faroeste.
- Caralho! Como você fez isso? Eu sempre tento fazer esse truque, mas nunca consigo – disse Manoel olhando para Nicolas surpreso.
- Então ele tinha uma caixa de fósforos e pediu isqueiro só pra puxar conversa com a gente, né?– disse ironicamente Júlia voltando-se para Sônia.
- Ué, mas talvez ele comprou quando foi lá dentro, você não sabe. Para de implicar com ele, nunca vi. – respondeu Sônia.
- Iiii já tô vendo que tem gente que tá toda interessada pelo tiozão. – retorquiu Júlia com todo o seu veneno.
- Ai meu deus, me deixa quieta, presta atenção aí na conversa.
A conversa parecia ser mais uma vez sobre algum assunto político.  Carlos parecia ser mais uma vez o narrador central:
- Cara, esse é um momento muito interessante. Toda hora surge um fenômeno inesperado, espontâneo.
- É, e da pra ver que esse tipo... – tentou Beatriz começar algum tipo de raciocínio, porém foi cortada bruscamente por Carlos.
- Tem que pegar essa galera e dar alguma orientação pra eles. Eles precisam de um projeto político concreto, se não pode ocorrer o mesmo risco das jornadas de junho, fica algo com muito potencial, mas sem pauta, esvaziado de conteúdo.
- Mas talvez não seja bem assim, por que tipo... – mais uma vez tentou Beatriz dizer alguma coisa, mais uma vez foi interrompida por ele.
- Por que agora é diferente – continuou dizendo Carlos – agora é a galera da periferia que tá tocando no ponto central do capitalismo, tá invadindo o maior templo de consumo deles. É uma questão de afirmação, tanto racial como enquanto classe social, mas também não é só isso. Quando a galera cola no shopping, tem muitos que nem estão abrindo, consequentemente está impedindo o consumo, está prejudicando o lucro das empresas. Isso é genial!
- Beleza, Carlos, boto muita fé no que você disse, mas acho... – começou a dizer Eduardo – que a gente tem que tomar muito cuidado com esse lance de dar linha política e tal, da questão do projeto político que você falou. Acho que realmente tem que ter um projeto, mas a questão é construir ele coletivamente, sem hierarquias, se não já vão começar a acusar a gente de vanguarda, farol da revolução e blá, blá, blá.
- Pois é, era isso que eu queria dizer se o Carlos não ficasse me interrompendo toda hora – disse apressadamente Beatriz antes que fosse interrompida mais uma vez e finalizou o seu comentário com um sorriso que parecia ser um misto de ironia com frustração.
- É isso! – gritou de repente Nicolas – É essa a tragédia de vocês pequeninos. Reparem. É nítido. Vocês mesmos conseguem sentir isso. Proclamam a própria libertação e, ao mesmo tempo, causam o próprio caos – Falava e gesticulava isso duma maneira tão espantosa, tinha até se levantado da cadeira. Era como se estivesse conduzindo uma orquestra, até lembrava Beethoven.  Aliás, os seus gestos eram tão bruscos com as mãos e os braços que isso realmente fez com que seus cabelos se esvoaçassem, lembrando de fato a figura do grande maestro.
- Vocês pequeninos, vocês têm uma fórmula perfeita de mundo. Sabem exatamente como tudo deve ser, mas não sabem como chegar até lá. Aliás, sabem sim. Basta ganhar a consciência das pessoas, não é assim que dizem? Ganhar a consciência! E quando todos estiverem esclarecidos assaltarão o Estado de uma vez. Para isso, é preciso pegar em armas, não é? Claro, a revolução tem que ser sangrenta, qual não foi? Mas aí vocês dirão: mas também não é assim. Existem as reformas, as reformas também são importantes, tudo é um processo, um processo histórico, mesmo que sejam graduais, elas são importantes para realidade concreta das pessoas, a realidade material. Mas o que importa mesmo é tomar o Estado, não é, pequeninos? A ditadura do proletariado, assim como foi na Comuna de Paris. Oh meus pequeninos proletários bem vestidos! Mas tudo isso é só uma fase de transição, não é mesmo? O mais importante é acabar com as classes, com a exploração do homem pelo homem. Viva ao comunismo! Viva a perfeição! Não! Mas não é assim, não é o fim da história, é somente o inicio dela, é o fim da pré-história, não é assim que o velho barbudo dizia? Vocês se lembram dessa frase dele? – Os jovens olhavam pra ele calados, atônitos, faziam apenas uns minúsculos gestos de negação, mas todos com o olhar bem fixo em Nicolas para ver onde tudo aquilo iria dar. As demais pessoas do bar também já começavam a olhar pra ele por causa de toda aquela cena.
Nicolas então caiu na cadeira soltando um suspiro como se fosse de decepção e continuou num tom muito mais baixo e sereno:
- Oh pequeninos, mas vocês não percebem a ação de vocês. Não vê como você é opressor com essa garota, mesmo sem querer? – disse isso se dirigindo a Carlos – E toda essa raiva meus queridos? Utilizam-na contra vocês mesmos e pelo visto devem utilizar contra qualquer um que se coloca no caminho do seu projeto perfeito de revolução. Afinal, quem é o inimigo? Se realmente é como o rapaz ali disse – agora apontou para Eduardo – Se o caso é fazer uma construção coletiva, sem hierarquias, não deveria então existir algum projeto pré-fabricado, a proposta de vocês se anula em si mesma, percebem? E vocês, moças, combatem o machismo dia após dia não é?  E, de fato, devem fazer, deu pra perceber o tanto que ele é presente no cotidiano, como o fato aqui na mesa. Mas o que pretendem fazer? Ter um casamento monogâmico feliz? Com lindas crianças com roupinhas limpinhas e bonitinhas? Sendo que todas elas vão estudar nas melhores escolas particulares para poderem ingressar na faculdade assim como vocês? Vão morar numa casa biossustentável dentro de um condomínio fechado e perceber a cada dia que passar como a boa máscara de seus companheiros, vai se esfacelando aos poucos, revelando o porco dominador e violento que ele é que adora sempre te foder por trás?
Terminou todo esse discurso parecendo estar exausto, corria muito suor de suas têmporas e sua camisa também estava um pouco molhada. Mirou um lugar qualquer na rua com olhar e se fechou numa expressão extremamente séria, praticamente impenetrável.
- Ai, vamo embora daqui? – perguntou Júlia – Eu to morrendo de fome, vamo em algum lugar comer.
- Vamo, vamo sim, eu to super laricado também – Respondeu Eduardo.
A maioria começou a se levantar, parecia que todo aquele discurso de Nicolas tinha momentaneamente cortado à embriaguez deles, estavam se preparando para pagar a conta, quando notaram que Sônia continuava sentada.
- Ué Sônia, você não vem? – perguntou Beatriz, mas a outra nem reagiu a pergunta.
De repente, Nicolas retornou sua mente das sombras e vendo que os jovens estavam indo embora parecia desesperado.
- Não meus queridos, me perdoem. Às vezes o meu jeito afasta as pessoas mesmo, eu sei disso, mas, por favor, não vão embora – Dizia tudo isso com as mãos juntas e cruzadas uma na outra, parecia uma criança implorando algo pra mãe – Se ofendi vocês, sinceramente me desculpem. Mas é que todas essas ideias, tudo isso que discursei pra vocês, comecei a pensar sobre exatamente quando tinha a idade de vocês, devia ser uma idade parecida com a de vocês. Fico pensando, se nessa época minha cabeça produziu essas coisas, o que deve estar fermentando nessas cabecinhas de vocês? Fiquem! Contem-me o que essas cabeças produzem, compartilhem comigo, por favor.
- Não tio, pra gente já deu. – respondeu Júlia – se não, você vai começar a dizer que nossas ideias são contraditórias e não sei o que. – se dirigiram então em direção ao balcão para poderem pagar a conta, mas deram apenas três passos e perceberam que Sônia ainda continuava imóvel e calada na sua cadeira.
- Sônia, você não vem? – perguntou Júlia.
- Não, to de boa. Pega esse dinheiro aqui, deve dar pra pagar a minha parte – e tirou da bolsa uma quantia de dinheiro, estendeu o braço e entregou pra Júlia, mal olhando para ela. Júlia então pegou o dinheiro, porém se abaixou e começou a cochichar no ouvido de Sônia:
- Sônia, eu não acredito que você vai ficar aqui com esse tio muito doido.
- Ai, eu não to com fome, podem ir sem mim, qualquer coisa eu ligo pra vocês.
Júlia deu uma risada inaudível e fez alguns gestos de negação com a cabeça e respondeu:
- Ou, você é muito doida mesmo. Mas você é quem sabe, qualquer coisa liga pra gente então. – Se despediram dando um beijo na bochecha de cada uma, os outros parecendo não acreditar se despediram somente com um aceno de mão.

Acesse também: www.ilusoesliterarias.blogspot.com

Musa

Tua beleza estética
me excita...
Tua beleza etérea
me incita...
E a cardio-bomba
taqui-tomba
e palpita!

sábado, 25 de janeiro de 2014

Descafeinado

- Comprei um café.
- Nossa!, que original.
- Quer?
- Ah, sim. Adoro creme.
- Mas não tem creme.
- Então, quero. Adoro açúcar.
- Também não tem açúcar.
- Ok. Gosto de xícaras.
- Tá no copo.
Pensou no quão original era alguém comprar um café. Sem creme, açúcar e no copo. Possivelmente, descartável.
- De vidro?
- Descartável.
Sabia.
- Não tem problema. Preciso de cafeína.
- É descafeinado.
Não tinha cafeína.
Nem tinham nada em comum.

E talvez isso fosse a única coisa que explicasse aquele relacionamento.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

AMIGOS INS(PIRANDO)PIRAÇÕES

EXATAMENTE

Que tanto busco em meu verso?
Quero aquela trova exata
– eu respondi pro universo –
como faz a Lóla Prata.

Desejo o tema perfeito,
também a rima mais bela;
poema do mesmo jeito
que o da Sarah Passarela.

Completando a trilogia,
a loucura de outro bardo,
que no asfalto vê poesia:
olhos do Sérgio Bernardo.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Pontinhos


Durante a noite, na praia, viu as luzes dos barcos em alto mar, isolados. Pensou em quão triste seria viver dessa maneira, passar o dia no mar, trabalhando, e à noite virar um pontinho em meio a outros pontinhos perdidos na escuridão.

No caminho de volta para a cidade, reparou nos pontinhos, todos empilhados, mas, ainda assim, isolados.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Projétil



Olhar perdido

Cravado na luz

Da modelagem do cristal.

Translúcida escultura.

Lâmina de punhal.

Ponta de projétil

Lançada no tempo.



Imagem da web.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Convidada Isabel Demétrio

Menina

A primeira fantasia. Meio fada. Meio princesa.
Fantasia na pele e na imaginação.
Toda garota já sonhou ser uma princesa.
É a magia, o conto de fadas.
A beleza, o encanto, o vestido, a tiara,
os desejos se tornando realidade.
Num mundo onde tudo é belo, é brilhante
e tudo é possível.
Perfumes de rosas, jasmins.
Águas cristalinas. Brilho nos olhos.
Fecha os olhos, dorme e sonha.
Um sonho de fantasia. De contos de fadas.
A princesa baila com seu vestido a girar,
e girar,
e girar,
girar...


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Isabel Demétrio
https://www.facebook.com/beldemetrio


domingo, 19 de janeiro de 2014

O Basta

Fernanda estava na casa dos trinta quando se deu por conta do que queria da vida. Cansada de vagar de emprego em emprego, cansada da burocracia estúpida das empresas, de saco cheio das mesmices dos antigos: “você deve ficar na mesma empresa por muitos anos para crescer”, ou “sua carteira de trabalho já está lotada de coisas diferentes, assim vai queimar o seu filme!”. Fernanda não dava mais importância nenhuma para todo esse papo furado; contudo, sabia que deveria manter-se fazendo um dinheiro para não morrer de fome, ou algo parecido, até o dia que recebesse apenas por aquilo que lhe desse prazer.

Até seu namorado Ivan, até mesmo ele, advindo de uma família tradicionalíssima de trabalhadores-padrão, reconhecia que sua namorada tinha um talento próprio, e que seu atual jeito de ser nada mais era do que a assunção de um novo estilo de ser de Fernanda, que originava uma nova perspectiva de vida para ela. Ciente disto e sem impor nenhuma barreira à sua companheira, Ivan apenas concordava com cada ideia que vinha da cabeça de Fernanda, sem contestar nada.

Essa situação de concordância por parte de Ivan foi motivando cada vez mais Fernanda, que começava a entrar de cabeça em projetos cada vez maiores e, aos poucos, ia deixando de se importar em suprir o sustento do lar com a falsa garantia que seus empregos ou empregadores lhe davam. Havia, é claro, a outra parte da moeda que fazia a diferença: ele, Ivan. Há doze anos no mesmo trabalho, Ivan tinha um salário respeitável para os padrões brasileiros e, mesmo sentindo-se cansado até o último fio de cabelo, Ivan gozava de certo conforto para “bancar” os dois por algum tempo – obviamente ele esperava que os projetos de Fernanda vingassem um dia para ele também, quiçá, desfrutar de umas boas e merecidas férias de seu fustigante trabalho.

Fernanda estava numa nova vibe. Mudara o cabelo, fizera sua primeira tatuagem (esta Ivan engoliu a seco no começo, até se acostumar melhor) e criava, a partir de sua casa, as coisas que lhe davam verdadeiro prazer. A pintura era uma delas. Com muitas telas, Fernanda passava horas pincelando, explorando cores, desopilando, ouvindo suas músicas favoritas e inspiradoras durante o dia livre que tinha – de Bach a Scorpions, de Miles Davis a Marisa Monte – o que lhe desse na telha.

Fernanda também fizera uma nova amiga através da Internet, Nara, que tinha uma delicadeza para escrever histórias infantis; não demorou muito para ambas abraçarem um projeto de criar uma revista em quadrinhos – Fernanda fazendo os desenhos, Nara escrevendo. E era impressionante como Fernanda desenhava bem. Ivan ficou orgulhoso de ver os primeiros esboços, e alegre de saber que Nara não era gay. Ivan tinha um temor de perder sua mulher para outra, o que seria muito frustrante para ele. Na verdade Ivan ficou bem amigo de Isaque, marido da Nara, e curtia bater um papo sobre motos com o novo amigo, que tinha uma Harley-Davidson original de 1974. Ivan até planejou comprar uma e fazer uma trip de casais em suas próximas férias.

Mas a coisa não parava por aí, não. Fernanda também se empenhava fazendo cursos online, como um sobre arte abstrata, além de barganhar por obras esquecidas no Brasil e no exterior; com o conhecimento adquirido e seu inglês fluente, Fernanda até dava uma de Merchant online para um site que fazia transações de obras de pintores famosos como Monet, William Blake, Jackson Pollock e tantos outros – e as primeiras comissões recebidas fizeram valer o seu esforço. Não apenas pelo dinheiro, que continuava se fazendo fundamentalmente necessário para tudo, mas principalmente pelo prazer de viver cada dia extravasando sua vontade de ser quem ela sempre quisera ser, mas nunca fora incentivada por ninguém, nem por ela mesma.

Agora sim, as coisas estavam mais fáceis em sua vida. Com sua arte ganhando vida dia após dia, e com seu coração cada vez mais de Ivan, Fernanda podia caminhar sozinha e sem medo pela vida afora...

sábado, 18 de janeiro de 2014

O Cheiro da Carne Queimada

Os odores alquímicos vindos da cozinha inebriavam os cômodos da pequena casa geminada. O tempero de Maria serpenteava para fora do seu lar, invadia a vila e, através dos vapores, anunciava à vizinhança que à noite o casal talvez se reconciliasse. Quem sabe o aroma da comida de Maria sepultasse a última madrugada entrecortada por seus gemidos, pelas pancadas desferidas por José e por sua voz desfigurada pela bebida?
Apesar da violência da noite, os vizinhos não deixaram de se encantar com o cheiro liberado pelas panelas da vizinha espancada. Quando feliz, Maria costumava dedicar-se com ardor às artes culinárias. A mistura de alho, cebola, óleo e outros ingredientes não podia combinar com o estado de espírito em que devia se encontrar aquela mulher surrada de véspera. Na verdade, não se ouvia sua voz miúda, um tanto desafinada, cantarolando melodias populares enquanto cozinhava. Naquele dia os cheiros que emanavam da cozinha de Maria não possuíam trilha-sonora.
Por conta dos fatos, naquela tarde, a mudez de Maria durante o cozinhar não causava estranheza à vizinhança.
Os moradores ainda tinham frescas em suas memórias o dia em que o casal se mudara para a vila, dois jovens ainda entorpecidos pela felicidade de uma lua-de-mel recente. Prestativos, os homens trataram de ajudar José a descarregar a mobília do caminhão enquanto Maria era convidada a se reunir com algumas mulheres em uma das casas. Foi improvisada uma feijoada para alimentar os trabalhadores. A noite terminou com uma roda de samba em homenagem aos novos vizinhos. Vendo aquele jovem casal dançando em torno dos músicos como que participantes de um ritual de agradecimento a gentil acolhida, quem imaginaria que anos depois a tranqüilidade quase idílica da vila fosse quebrada pela violência de José no breu da madrugada?
Naquela noite, José chegou à vila um tanto constrangido. Era a imagem do canalha arrependido. Passara todo o dia no trabalho respondendo aos colegas por meio de monossílabos, cabisbaixo, ruminando as possíveis consequências da sua brutalidade. Não era um homem dado a perversidades. Culpava a cachaça pelo incidente da madrugada anterior. Também, por que Maria havia de se meter em sua vida? Era adulto, senhor de suas vontades. Que mal havia em ficar umas horas na birosca tomando uns tragos com os amigos? Todos faziam aquilo por aquelas bandas. Chegara trocando pernas. Maria, de cara amarrada, o censurara pela bebedeira. Reclamou. Ele falou mais alto. Contudo, o que provocara a sua ira, materializada nas porradas dadas na companheira, fora ela chamá-lo de desgraçado. Que chamasse do que quisesse. José se esparramaria em um canto para curar o porre e tudo acabaria. Mas qual! Sua mulher o xingara de desgraçado! Ela conhecia o seu ódio por este insulto. Seu pai costumava ofendê-lo com aquela palavra. Fora de si, deu uma bofetada na esposa. Ela, por força do impacto, caiu sentada no sofá arregalando os olhos castanhos, surpreendida pela reação do marido. Limpou o sangue que brotara do canto do lábio e demonstrando um ódio entranhado, repetiu três vezes sem baixar a cabeça: “Desgraçado!”, “Desgraçado!”, “Desgraçado!”. José desferiu dois socos na mulher atingindo-a no rosto e abdome. Ela não resistiu à violência dos golpes, desmaiando. Extenuado, o homem dormiu no sofá. Ideias embaralhadas pelo álcool, decretou que a esposa fora culpada pela própria agressão. Na manhã seguinte, porre curado, não entrou no quarto para ver o estado de sua mulher. Foi trabalhar corroído pelo remorso.
Enfiou a chave na porta, atento ao delicado som da fechadura girando. José parecia captar as dezenas de olhares vizinhos ocultos nas casas geminadas, à espera, quem sabe, da reconciliação.
 Encontrou Maria radiante, com um sorriso desfigurando seu rosto. A mulher trajava seu melhor vestido, um azul, que modelava sensualmente o corpo. José percebeu um leve hematoma abaixo do olho esquerdo da esposa. Notou a mesa posta com capricho e o olor da comida impregnando a casa. Aliviado, entendeu que fora perdoado. Jantaram como nunca haviam jantado. Maria se esmerara nos pratos. Riram, gargalharam, beberam, se acariciaram e às portas da madrugada amaram-se como há muito tempo não faziam.

Ao invés dos galos, a vizinhança amanheceu despertada pelos urros de José, corpo incendiado, a correr sem direção pela vila. Para horror dos que testemunharam, sentada a soleira da porta, Maria apenas observava a agonia estrebuchada do marido. Dera a José uma noite memorável antes da vingança. A Justiça decretou quinze anos de prisão. Homicídio por motivo torpe. Vingar uma surra não justificava assassinato, entendera uma parte do júri. Maria recorreu. Talvez ganhe. Dizem que o cheiro de carne humana queimada ainda hoje empesteia a vila. 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Valsa

Vem dançar comigo,
em passos lentos,
a valsa gravitacional,
na lua.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Caos

A fumaça aos poucos tomava conta de seu quarto
um copo vazio
um cinzeiro cheio
não era nenhum dia especial para ele
era seu aniversário
igual a tantos outros
igual a todos os dias

Desistira definitivamente
dos poucos conhecidos que tinha
as pessoas não o interessavam mais

Outro cigarro
tremia
agora algo diferente o envolvia
e era isso que ele tanto temia.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Poema canalha

Não quero mais do amor / O enlevar do espírito / Nem da paixão / O falso brilhante... / Muito obrigado! / Já não sou o mesmo que dantes. / Quero aqui, comigo, / Somente essa solidão, tão minha, / Que sentimento igual / Tão puro e virginal / Nenhum outrem me daria... / Quero o silêncio / De uma tarde fria / Tempo para ler, pensar, / Tempo para ser eu / Sem importar a quem seja / Sem me importar com quem seja. / E quando os desejos da carne / Afligirem-me o corpo? / Ora! / Afirmo, nesse poema canalha: / Deixem-me chafurdar /Como um lúbrico porco / Nos imundos lupanares! / Deixem-me da noite / Sorver esses ares... / Deixem me perder por um triz / Nas curvas da dissimulada meretriz / (Amante e ao mesmo tempo atriz...) / Quero pagar com prazer pelo prazer vendido / Pois tem ele muito mais verdade / Que quaisquer desses sentimentos fingidos. / Então, amigo, não sejas tolo, não ames! / Busques antes / O gozo rápido e o orgasmo infame / Pois eles serão mais sinceros / Que uns cínicos e falsos "eu te amo", "eu te quero"... / Quanto às doenças do sexo? Te afianço: / Estas tem eficaz proteção / Em uns poucos centímetros de látex / Muito, muito mais / Que as dores do coração. / E se acaso, por esses males passares, / Mantém a calma; / Afinal, serão eles muito menos penosos, / Que os ditos males da alma...

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Aldravia de Bar

gotas
de
solidão
adicionadas
ao 
vinho

************

Nota: Aldravias, em regra, não possuem título. Cometo o erro aqui de forma proposital para homenagear o Bar, desejando a todos um Feliz 2014. Sem solidão!

Edweine Loureiro

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Menos a minha (DBS)

naquele dia eu fechei o olho
todos os problemas acabaram
poucas lagrimas
forte dor em alguns poucos
descaso de muitos
lembrancas para o tempo dissolver
olho nao abriu mais
ninguem viu
de longe se foi
todos os ex-pertences orfaos
a vida seguiu
menos a minha

domingo, 12 de janeiro de 2014

Onde cantam as cotovias

1.

Mas que tédio são os dias
onde cantam as cotovias...
Não há drogas, não há vida:
nunca houve um suicida...

Pus os meus barcos no mar
mas não querem navegar...
Tenho moinhos de vento
mas eles giram tão lento...

Nas ruas, todas tão planas,
passam manhãs cotidianas.
Mas que tédio são os dias
onde cantam as cotovias...

2.

Onde cantam as cotovias
cantam outros passarinhos
canções de todos os dias...

Quando acordo no meu ninho
já cansado de morrer
não há sangue, nem vizinho

a quem possa recorrer.
— E esse silêncio lá fora
que não me deixa escrever!

Como eu queria ir embora,
voltar pras minhas orgias,
e me esquecer da aurora
onde cantam as cotovias...

***
poema publicado no blog do autor

Desprovidos de Alma

Tão claro do que poderia ser possível, acordei naquela manhã com a certeza de que tornaria o mundo um lugar mais suportável para se viver.
Eliminar os desprovidos de alma, os ausentes de caráter, os humanamente inanimados.
Assim, levantei com a convicção de quem acertaria mil vezes na loteria, marcaria o gol no último minuto de jogo, ficaria com a mulher mais bonita da festa.
Sai de casa com a ideia tão intensa como fogo, que saberia exatamente o que fazer quando chegasse o momento.
Desloquei-me serenamente, durante prolixos 76 minutos, até a Câmara Municipal da cidade. Para mim, o covil dos mais famigerados lobos, famulentos, desprovidos de alma, sedentos por sangue.
Sabia precisamente a hora que ocorreria a sessão, o conciliábulo, as formulações sobre subtrações públicas corriqueiras. Impressionantes malfeitorias que acontecem em plena luz do dia e com o aval do povo, dos alienados, dos desprovidos de cérebro.
Logo que adentrei o grande salão, os lobos lançaram olhares incrédulos, famélicos por saber como um ser tão repugnante como aquele, execrável, um inseto, um cidadão, poderia estar ali. Tendo a ousadia de ingressar no covil sem o aval dos seus iguais acerebrais.
Entretanto, mesmo antes da turba finalizar seus pensamentos maléficos e partirem para a carnificina cidadã, arrebatei da mochila a arma. Ansiosa para esputar o metal. E assim, alvejei todos, todos os lobos, ausentes de caráter, desprovidos de alma.
Com o alívio de quem sabe que está absolutamente certo em suas ações, fui embora lentamente, deliciando-me com cada fragmento desfechado, degustando o deleite do sangue entornado, dos corpos alastrados no chão, dos lobos no salão. Que já desprovidos de alma, agora jaz o que era maléfico, abstêmio de humanidade.
Voltei para casa com a mente tão serena como fui ao meu passeio à Câmara Municipal. Até me passou por pensamento, tão velozmente como a correnteza do rio mais tempestuoso, que ninguém, nenhuma autoridade me abordara, nem antes, durante ou após a benfeitoria realizada. Contudo, não dei importância. Talvez, eu tenha adquirido muitos adeptos com a minha façanha, minha generosidade.
Assim, voltei para cama para complementar meu descanso, agora merecidamente conquistado.
Então, e somente então, percebi que não estava indo dormir, e sim já o estava durante todo o tempo desta narrativa.
Com isso, intuí que o que fizera estava vivo somente em devaneio, um sonho, um pulcro e sublime sonho que tive após mais uma noite de propaganda eleitoral gratuita, símbolo da democracia áspide que vivemos, nós, pobres ratos. Nesse tempo de eleições, nesse fim dos tempos.
Um devaneio, a aniquilação dos lobos desprovidos de alma.
Por favor, não me acordem nunca mais, ou até que o mundo esteja limpo.
*Nota: O autor não é favorável a nenhuma forma de violência, seja ela física ou verbal. Mesmo que os lobos a mereçam com todo fervor. Lembrem-se, no covil estão apenas os que receberam nosso aval.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Teatro das Formigas - Ato 5 e Ato 6

Quinto Ato
.
pela varanda
há sobras de festança...

sem escrúpulos
algumas saem do palco
pela surdina

amontoam
estoque de papelotes,
e desaparecem...

sem vestígios
dos desfalques

sendo parte
do contrabando...
.
Sexto Ato
.
reunidas
em plenário

incontinenti
decidem...

onde
pôr marcadores
via GPS,

sob vigilância
ostensiva
dos mercadores,

resguardada
a integridade material
do embrulho

apreendido...
.







sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Convidado Emyli Sousa



A casa da esquina

            Se soubesse antes, nunca teria virado aquela esquina… Voltava da faculdade, eram 10 horas da noite, o campus já havia fechado. Todo dia era tudo sempre igual, saía cedo (ou tão cedo quanto conseguia), sempre estudo, sempre gente, sempre discussão e os professores que não conseguiam ver além dos seus próprios umbigos. Toda aquela masturbação mental me enojava às vezes, mas aprendi a respirar fundo: quando se tem um objetivo, essa é a primeira coisa a se fazer, salvo o clichê. Respirei fundo quanto ao machismo de cada dia, respirei fundo quanto àquela arrogância inveterada, respirei fundo com a comida da lanchonete e respirei fundo quando percebi que mais uma vez, teria que virar aquela esquina.
            Já ouvira gritos vindos daquela casa antes. Sempre grossos, ficava imaginando se nunca ouviria gritos em resposta. Sim, eu ouvia gritos de um só. Mas não podia haver um só. De onde viriam aqueles estrondos? De onde viria aquele silêncio, aquelas pausas? Os gritos que evocavam um poder covarde por vezes ressoavam na rua, fazendo os vizinhos saírem de suas casas. Mas ninguém nunca foi lá ver – talvez pelo tremor, talvez pelo silêncio que respondia. Poderia ser simplesmente uma crise esquizofrênica ou sei lá, um ataque de raiva, problema do outro, coisa de marido e mulher. Todo mundo sabia a origem do primeiro, mas a resignação do segundo parecia ressoar ainda mais forte, se repetindo pelos arredores da rua.
            Dessa vez não se ouvia gritos. O portão como sempre, nesses momentos de silêncio, estava aberto. Saindo da garagem, outro carro de luxo… Lembrar de respirar fundo. O cachorro preso à corrente, criado de forma violenta para ser violento; golfada de ar. Meus pulmões já estavam ardendo, talvez fosse pressentimento, talvez necessidade e no fim, talvez fossem os dois. Apertei o passo para não ser vista, tentando não abaixar o olhar. Envergonhava-me abaixar os olhos, por instinto, ao virar aquela esquina. Se a errada não sou eu, por que esconder o rosto como culpada? Errado, certo… Tudo se relativiza quando se trata de um jogo de poder.
            O gosto de nojo me subiu à garganta quando percebi que olhos me analisavam. Apertei o material entre os braços e desejei estar em uma bolha. O bar já havia ficado na outra esquina, única movimentação nesse horário no meu bairro. Com o pulmão ardendo, vi que se aproximava pelo reflexo do vidro do carro. Não eram movimentos rudes, mas eu sabia que poderiam ser. Puxou-me para dentro da garagem, deus ou seja lá o que for sabe o quanto eu queria gritar. E eu iria, quando ele gritou. Com a voz cada vez mais grossa ressoando no meu cérebro, rosnava coisas que por sorte, não consigo lembrar com clareza. Algo sobre quem eu achava que era, algo sobre quem mandava ali. O jogo estava claro, o detentor da força detinha também o poder. Não era só o poder de ter um carro de luxo sabe-se lá por que meios, de tornar violento um animal ou de fazer calar a vizinhança inteira. Era o poder sobre o meu corpo que estava em jogo. A voz, a respiração, o tremor, o gosto amargo na garganta; nada disso era meu.
            Consigo lembrar cada detalhe do que aconteceu, com excessão do que me foi dito. Enquanto ele gritava e eu tentava resistir, ele me batia. Batia em mim, nos móveis e em qualquer coisa que pudesse ficar à frente de si. A dor parecia atingir cada um dos meus órgãos e por mais que eu tentasse, quanto mais os berros me invadiam, mais o nó na garganta que me impedia de gritar, crescia.  Agora eu entendia aquela resposta silenciosa sobre a qual tanto me questionava e agora, sabia qual era a sensação de ouvir meu silêncio ressoar pela vizinhança. Queria pedir socorro, queria sair dali, queria que meu corpo fosse jogado no fogo, pois só assim se mataria os germes que vinham de cada toque e cada fluído daquele ser. Gozou três, quatro, cinco vezes. O prazer vinha com raiva e com a raiva, mais prazer. Quando se questiona o porquê de uma mulher sentir culpa quando violentada, entre tantas coisas, talvez se deva entender que ela busca entender o porquê de tanta raiva contra si. Só alguém que fez uma coisa muito errada pode merecer tanto ódio, nessa nossa sociedade de mentalidade cristã.
            Senti o peso de todo aquele ódio sobre mim, assim como a exaustão que ele provocou. Terminados os trabalhos, parecia até uma última sacanagem, para não deixar espaço que pudesse me fazer pensar que eu tinha a alguma relevância naquele momento. Repousou seu corpo sobre o meu. Eram 300, 400 quilos? Antes sentia meus órgãos e agora também minhas vísceras. Não bastasse o peso sobre a cabeça que latejava, sentiria por mais alguns minutos aquele soco permanente no estômago.  Conformei-me como um mestre budista: acho que atingi minha iluminação espiritual – de tanta dor, passei a nada sentir. Enquanto eu buscava meu nirvana, ele começou a roncar como um trator. Não sei o que acontece nesses momentos, penso que vem uma dádiva divina que te faz achar que qualquer coisa é algo normal. O que mais poderia ser anormal depois daquilo tudo? Esquivei-me e com uma força que me pareceu vir de outra dimensão, rolei seu corpo macilento para o outro lado.
            Procurei minhas roupas no chão. Por sorte, nada fora rasgado. Vesti sentindo meu sexo arder. Ao olhar, vi um pouco de sangue – preferi ignorar. Peguei minhas coisas espalhadas pelo chão. O cachorro se divertia com um dos meus livros. Deixei, alguém precisava se divertir naquela situação toda. Olhei no relógio: 3 da manhã. Parecia haver passado três dias. Com dificuldade, andei até o portão e virei à esquerda. Dali, já conseguia vislumbrar minha casa. Faltavam alguns passos – quarenta, cinqüenta, talvez. Não era muito, embora eu não soubesse até onde minhas pernas poderiam resistir. Com a cabeça latejante e os gritos dele ressoando, só me restava andar. Quando se tem um objetivo, a primeira coisa a se fazer é respirar fundo. Foi o que fiz.




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Emyli Sousa
http://limpeseusolhos.wordpress.com/