quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Pode ser um dia...


Pode ser um dia…

Há dias que quando vou à minha cidade materna, me questiono sobre a vida no campo, sobre a vida no Alto Minho. Do rodopio do trânsito caótico ao ensurdecedor borburinho das comadres que deambulam pela padaria e cabeleireiros, onde a vida alheia é posta a nu, fico com a sensação que não há mais que o belo sentir a natureza a falar por si.

Aqui neste recanto do Alto Minho a vida vai mais ao encontro dos meus desejos. Embora seja sempre um pelica que aterrou nestas terra bravias e em comunhão com a natureza, fico pensando que já devia ter feito esta decisão há muitos anos. Não existe nada que compre o sossego do interior minhoto, onde a vida segue o seu ritmo sem grandes sobressaltos.

Claro que é sempre um ato de coragem, deixar tudo para trás e sem família aposentar-me nestas terras lindas e verdejantes. Mas para tudo há sempre uma primeira vez, e esta foi certeira, direta ao meu aconchego desejado.

Pode ser um dia… em que o mundo dê-me as voltas, mas por enquanto quero viver estas dádivas que Deus me oferece, onde longe de enguiços levo a vida que escolhi para que meu trabalho dê os seus frutos. 

Muito embora, como todos sabemos que a vida não é nenhuma pera doce, podemos sempre aproveitar o que dela melhor se tira, e fazermos em comunhão com os nossos semelhantes o melhor proveito.

Pode ser um dia… em que as forças me faltem para elogiar a mãe natura, mas o meu olhar estará sempre lá, onde a visualização Dela poderá trazer novo enlace para melhor me sentir. Guardarei no coração a inspiração dos teus vales e serras que me fazes comtemplar num privilégio inigualável.

Pode ser um dia… em que o que resta de mim sirva para educar uma nova geração perdida nas interrogações.

Pode ser um dia… em que respirar os ares puros da serra me levem a acreditar num mundo melhor, onde a mentira e a opressão não tenha lugar em nós.

Pode ser um dia…

 

Quito Arantes

Portelinha

Castro Laboreiro

27/02/13

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

No colo da morte

Quando criança eu rezava




Para que a morte levasse a mim e meus parentes de ataque cardíaco.

à noite

em sono profundo

no silêncio de casa.



Já me espantavam as mortes violentas

pelo crime

pelos acidentes

pela guerra



Hoje não penso apenas em mim e na familia

Gostaria, será utopia?
Que a morte leve a mim e a todos

como uma mãe leva um filho.











sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Desfigurado

Desceu daquele ônibus lambendo cada degrau com os pés. Sentiu o gosto quente do asfalto em sol a pino. Percorreu a praça dedilhando o aroma das flores enquanto o canto dos pássaros massageava suas pernas cansadas. Viu o toque do sino vindo em sua direção, por todos os lados, ecoando pela catedral. Ouviu cada detalhe do que queria dizer cada escultura do museu. Deu voltas pela cidade em um cavalo branco e uma charrete tinta, amadeirada, com toques frutais e final suave.

Ao final do dia, ouviu o sol tombar no horizonte e, apesar do cheiro de chuva, não sentiu o gosto das nuvens. Durante a noite, todas as luzes eram artificiais, mas as sombras, caridosas, acolheram-no em suas camas e o cobriram com o sangue quente do jornal popular. Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página e alojando-se em seu tímpano, dormiu.

No dia seguinte, acordou sendo lambido pelo sol áspero e continuou sua saga.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Chuva



Vento e chuva vêm...

Nuvens correm pelo céu.

Os pingos, nas capas.
 
 
Imagem (web):“Apártalos que voy con prisa” (1959)  Remedios Varo

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Economia e a Chuva




era uma noite fria e
com um céu promissor,
no brejo paraibano,

quando eu, fechado
para o mundo, exceto
pelo par de janelas abertas,

tentava assistir na televisão
um debate acirrado
entre nobres doutores
economistas
digladiando-se sobre
se o crescimento da economia brasileira
ficaria na casa dos três e meio por cento
ou quatro por cento para o ano de
dois mil e treze,
além de longos minutos sobre algo
em relação à taxa de juros
para o investimento internacional;

eu assistia ao programa meio avoado,
mais atento ao hálito noturno,
que, silencioso, calava
algum outro comentário sobre o
intervencionismo governamental
na economia e medidas de consumo.

pois era o céu que prendia minha atenção
com suas tímidas nuvens rosadas.

naquele momento,
o único juros
que eu ansiava receber era
qualquer parcela de chuva
que fosse.


André Espínola

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Sexta-feira de Carnaval


É sexta-feira. O sol ainda não se pôs, mas o surdo ecoa pelas ruas do centro. A confusão de pessoas saindo do trabalho se mistura às batidas.
Ele está com a gravata frouxa quando a vê.

- Psiu!

Ela não olha. Está com uma tiara colorida na cabeça. No corpo, a roupa do trabalho.

- Psiu!

Ele insiste.
Ela insiste na recusa.

- Vou te dar duas opções.

Ela não acredita. Olha pra ele. Finalmente.

- Oi, gata.

Odeia ser chamada de gata.
Volta a atenção para as amigas.

- Fala comigo, gata. Olha pra mim.

Ela segue ignorando.
Ele repete o discurso anterior.

- Então, vou te dar duas opções.

Nunca viu ele antes. Não acredita no ultimato.

- Gata, é o seguinte: ou você me beija ou dá uma cambalhota.

Ela não acredita.
Ele não deixa dúvidas.

- Ou me beija ou dá uma cambalhota.

Ela encara. Ele, sério.
As amigas dela observam a cena.

- Prefiro rolar até a Barra da Tijuca.

Era ela. Pura delicadeza.

Boa noite....


Descida do podio concluida
Nem a lembranca servia mais para nada
O extase se desfazia
Nada mais para comemorar
O trabalho de sempre de novo
Mais criticas que aplausos
Fotos na gaveta, medalha na parede
Realidade na pista
Nem acento mais me motiva
E vai assim errado mesmo
Quem vai ler?
E lembrar?
So pesar agora
Nada mais
A luz se apagou
Agora os lobos aplaudem
E esperam o resto
Pra triturar e uivar
Vida besta
Sem gloria
Sem nada
So no sonho
Fecho os olhos
Boa noite!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Bem vindo Raul

Para os meus amigos Jú, Serginho e seu primeiro rebento, o grande RAUL.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Concebido com a mais importante melodia
Tendo como ouvintes quatro paredes e o tálamo
Momentos da mais bela rebeldia
Corpos rebeldiamente entrelaçados no quarto

Agora vem...sua primeira nota...uma oitava acima da que todos esperavam
A melodia...pouco importa, pois tudo és belo...berro da boca para fora

Um lindo refrão monossilábico
Pedinte por água, comida, carinho...eu acho
Seu idioma...só seu...abstruso e alegórico...ouço “és ilógico”
Entretanto, todos fingem que entendem a fala indigesta...dizem “és implexa”

Chora Raul
Toca tua nota singular...soul do sul
Choro cifrado
Cifra angustiada no refrão acriançado

Toca Raul
Os nossos corações com os olhos ainda fechados
Aguardando o melhor do mundo para abri-los esbugalhados
Toca Raul
Como só você sabe
Tablaturas únicas na sua pulcra face

Metáforas reluzentes
Gosto do que vejo...você sente
Sorriso flamejante
Raul e o primeiro dente

Nunca esqueça
Apetece por dias inigualáveis...seja sincero
Já que tudo que pára apodrenta
Cante, chore, siga, prossiga por paralelas inseparáveis...caminhe correto

Agora que chegou...aproveite
Chore, toque, nos delicie com o seu mais estrondoso deleite
Não é um choro simplesmente
São os primeiros acordes de uma vida recente



sábado, 9 de fevereiro de 2013

A DOENÇA É A DESCULPA DO CARÁTER



Abro a porta
Entro
Sentada no sofá
Minha irmã
Dou um tiro
Na testa
Ela cai
Morta
Um bem pra humanidade
Menos uma sanguessuga
Ando pelo corredor
Surge
Minha mãe
Apavorada
Outro tiro
Na testa
Ela cai
Morta
Menos uma injusta no mundo
Vou pra cozinha
Abro a geladeira
Pego o leite
Bebo
Dessa vez minha mãe não vai reclamar
Ótimo
Agora o leite é de quem quiser beber
Assim tem de ser
Comida para quem tem fome
Não só pra filhinha mimada
É
A filhinha mimada não vai poder bebê-lo
Eu
Não sei
Não sou doente
Posso ser tudo
Só não me chamem de doente
Sempre ouvi minha mãe ser doente
As pessoas diziam
“Sua mãe é doente, não é boa da cabeça.”
Cansei de ouvir isso
Ela era mau caráter!
Não é mais
Absolvi
Agora sou um justiceiro
A doença é a desculpa do caráter

Pablo Treuffar
Licença Creative Commons
A DOENÇA É A DESCULPA DO CARÁTER de Pablo Treuffar é licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported.
Based on a work at http://www.pablotreuffar.com/.
A VERDADE É QUE EU MINTO

A VERDADE É QUE EU MINTO

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Por que não há rimas para o teu nome



Escreverei
antes que este dia acabe
um poema sobre teu nome
que ainda sim, não impedirá em breve, o doce fim do mundo
Escreverei
antes que este dia acabe
teu nome, diversas vezes, em um poema
que, este sim, interferirá no balé dos astros e constelações
fazendo surgir assim um novo e 13º signo
Escreverei então
um poema sobre teu nome
todos os dias
com o afinco de valentão centroavante exímio
ao celebrar gol chorado nos estertores do 2º tempo
Escreverei, diversas vezes
todos os dias
teu nome em um poema
que findado, não caberá inteiro
rabiscado sobre o Trópico de Capricórnio
Escreverei, um dia
em todos os meus poemas
teu nome
após passar noites em claro
decifrando rimas e palavras perdidas
em dialetos mortos
Escreverei, um dia
um poema sem rimas sobre
teu nome
que atravessará o Atlântico
e será compreendido pelos bantos congoleses
em sua ancestral espiritualidade
como o grito primal de seus deuses do mar
Escreverei, um dia
todas as rimas de teu nome em
um poema
silencioso como um tigre, felino em riste
sob à espreita na escuridão
abissal da floresta
Um dia, não escreverei mais
pois finalmente, todos os meus poemas
serão somente
teu nome
# contêm citações de f. corsaletti, m. quintana, h. miller

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Pedido de Demissão



"cansei dos olhares, dos sorrisos maldosos, dos balbucios vis. cansei dos holofotes ofuscantes, dos aplausos falsos. cansei de ser diferente. quero ser apenas mais um lugar-comum na multidão dos iguais. um puído clichê. quero vestido curto preto básico, sombra e rímel, sandálias de salto alto trançadas nos tornozelos. quero beber a vodka com energético que todos bebem, engolir o comprimido estimulante que todos engolem, dançar o bate-estaca que todos dançam, sortear meu sexo para quem o quiser. quero minha vontade fluida, volúvel, meu desejo banal, fútil, meus anseios palpáveis, inúteis. quero virar coisa, mais um objeto humano para ser consumido até a vida útil acabar, queimar como fogo de artifício, fugaz e multicor, em meio a centenas de outros, explodir, anônima e feliz pela escuridão que se avizinha. quero o glamour do não-existir, a paz do não-ser. o silêncio e o breu, é só o que quero. estou farta. desisto. peço demissão."

sofia, ex-mulher barbada

Carlos Cruz - 01/12/2012

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Aritmética Noturna




Dois copos
um cinzeiro
várias idéias
nenhum rumo

Seis cervejas, dois whiskys
mililitros alcoólicos
dez da noite
noves fora
páginas rabiscadas
péssima caligrafia
sem enxergar direito
tentando escrever poesia:
completamente bêbados
não fizemos porra nenhuma
só o de sempre. 

domingo, 3 de fevereiro de 2013

a plenos pulmões



(para Maiakovski)

entre os livros da prateleira
encontrei meu passado
e consagrações para o além
descobri-me uma tagarela

recordei das falas repressoras de minha mãe
e das palavras de incentivo de meu pai
mal sei dizer se algum estava certo
mas sei dizer das lixeiras

como elas nasci com uma queda
um leve pendor para a sarjeta
becos escuros e fétidos
meias furadas e para a decadência

lembro-me ainda das cuecas samba-canção
penduradas no varal de minha avó
e do primeiro sexo anal
sem sabão

e nem me olhe com essa cara de repressão
gosto de agredir olhos
já que os ouvidos são acostumados
com palavras de baixo calão

e tenha certeza que o jornal é pior
bem pior que minhas palavrinhas imundas
putas e infiéis são rasgadas de orelha a orelha
todos os dias, mas parece que não são humanas

ninguém se importa com os cães sarnentos
ou com as goteiras do domo central
quem há de olhar a propriedade alheia
e se agarrar à ordenha de gravatas?

pintem os cabelos e os olhos de preto
pois os vestidos são frágeis e podem puir
amarrem os tornozelos para que os escravos
permaneçam à vista e cativos

é preciso calar o jovem que se rebela
vejam quão fundo é sua crença
saibam quão lúcida sua vidraça
se nada der certo cortem sua goela

não peço que bajulem os críticos
ou que cortem suas unhas antes
da ceia de Natal
mas peço que calem sua boca

e iremos felizes suportar o luto
do escritor vagabundo que ousou
e vistam-no de branco para ressaltar
o que não foi dito

ontem fui até o velho casarão
o mesmo onde passei minha infância
e nada lá era como antes
nada lá era mais meu.


sábado, 2 de fevereiro de 2013


A NOITE MISTERIOSA DOS MORTOS-VIVOS



Peguei no sono novamente. E mais uma vez fui sugado para um mundo de trevas e medo. Como das outras vezes, fazia frio. Um nada que machucava a alma. Não sei se estava de olhos abertos ou fechados. A escuridão era tamanha que tanto fazia enxergar ou ser cego. E eu ali novamente. Mas onde é ali? Estou perdido no silêncio. Um vazio infinito. Medo. Pavor e solidão. Uma solidão tão dolorida, que só restou chorar. Fiquei paralisado, como que suspenso no ar. Tentei ouvir alguma coisa, qualquer coisa. Nada.
Até que ao longe ouvi um sussurro. Tentei falar, mas minha voz não respondeu. Fiquei  naquele breu o que pareceu uma eternidade. Aquele limbo estava me matando. Se eu pudesse sentir mais alguma coisa além de medo seria meu suor. Tenho certeza que escorria por todos os poros do meu corpo. Corpo? Eu não sentia meu corpo. Nadava no nada.
Quando o mais puro terror tomou conta de mim, pensei que iria morrer sufocado. Não havia ar. Puxei uma respiração que imaginei ainda ter e não veio. Sufoquei. Entrei em completo surto e acordei.
Acredito que gritei ao acordar. Naquele ônibus noturno, pequenos pontos de luz iluminavam o interior do veículo. O carro chacoalhava de um lado para o outro numa velocidade acima do razoável. E ninguém acordou. Somente eu. Ou pelo menos eu não ouvia ninguém. Como tentava me recuperar do maior medo que já havia passado na vida, nem percebi que ao meu lado, o banco antes ocupado por um menino chorão, estava vazio. A mãe do garoto já tinha tentado de tudo para acalmar a criança. Cantou, brincou, brigou, e por fim meteu uma mamadeira nas mãos do menino, que gordo, se engalfinhou naquilo. Nem a mãe, nem o garoto estavam por ali.
Sequei o suor da testa, tentei arrumar os cabelos que despenteados deveriam estar dando a impressão de que eu era um maníaco endiabrado. Se fosse  possível um espelho, eu veria a própria face da morte em meu rosto. Minha língua seca grudou no céu da boca. Meus lábios estavam rachando. Minha roupa amarfanhada exalava o cheiro forte do medo. Limpei a garganta e olhei ao redor. Não só os bancos ao meu lado estavam vazios como os da frente e os de trás. Levantei subitamente com o susto de não ver ninguém. E o pavor mais uma vez tomou conta de mim. Eu estava sozinho naquele ônibus. Sozinho? Imediatamente fui procurar o motorista que não estava lá. Me vi em alta velocidade em um ônibus desgovernado dirigido por ninguém. Quase gritei. Corri até o volante na tentativa de colocar o carro no rumo, mas só consegui derrapar e bater com força nas rochas que ladeavam a estrada. Com forças não sei de onde, deixei o ônibus em linha reta. Aos poucos os freios foram parando aquela enorme máquina vazia. Apenas a lua dava cor à estrada. Escuridão que também tomava conta de mim. Quando finalmente estacionei não tive reação. O que havia acontecido? Onde estava todo o mundo? Andei por entre os bancos e só vi os objetos pessoais dos passageiros, alguns largados de qualquer jeito. Tão de qualquer jeito que muitos se quebraram. Alguém levara todos embora? Mas como? Foram todos abduzidos? Não, seria uma explicação muito fora da imaginação coerente de um homem letrado como eu.
Desci do ônibus e fui andando estrada à fora, sem escutar uma alma. Estava frio. Ato contínuo, me encolhi. Um peso caiu sobre mim, como se mil corpos sentassem em meus ombros. Andei devagar, olhando para todos os lados. Apressei o passo,  ensaiei gritar, chamar alguém, mas foi inútil. O ar estava rarefeito e os sons prejudicados. Ao longe vi uma luz tremulante. Uma tocha? Sim. Fogo. Corri em direção a ele. Nem percebi que saia da estrada e me embrenhava numa floresta fechada. O mato alto batia em minhas pernas. Feridas se abriam. Lanhos não muito profundos deixavam um pequeno rastro de sangue por onde eu passava.
Fui em direção à luz sem ao menos raciocinar. O fogo se aproximava e percebi que não era apenas uma tocha, mas várias. Muito próximo do clarão que as chamas formavam parei minha corrida. Tomei fôlego, minhas pernas doíam, meus braços, meus ossos, músculos. Tudo em mim parecia moído. E a dor era excruciante. Respirei e olhei com mais atenção ao que se passava na clareira. E ai eu morri. Ou praticamente. Todas as pessoas que se perderam no ônibus estavam ali, mas não eram mais humanas. Não se podia chamar aquilo de humano. Eram uma espécie de mortos-vivos.
Desligados do mundo, alheios, sangrando, babando, machucados e imóveis. Seguravam as tochas e olhavam o além com olhos rasos, furados, carcomidos, mortos.
– Meu Deus, eles estão mortos, pensei comigo mesmo. Até o menino chorão. Depois de alguns segundos eternos, desnorteado  fui andando para trás devagar, sem nem respirar, sem fazer barulho, sem ao menos piscar. Eu não conseguia ter pensamentos coerentes. Tudo que se passava na minha mente era que tinha que voltar para a estrada, para o ônibus. Precisava ir embora dali e me salvar.
Zumbis.Como? Por quê? E por que não eu? Não entendia. Andei de ré até uma distância que julguei suficiente para começar a correr sem ser notado. Mas o azar fez com que eu pisasse forte em um galho velho. Foi o suficiente para um de aqueles monstros encontrar meus olhos. Em nossa troca de olhares eu gelei. Senti todo o ódio, medo, fome, crueldade que tomava conta daquele corpo. E ele gritou. Na verdade o monstro grunhiu. E todos eles olharam em minha direção.
Corri. Corri como nunca, como um louco. Corri como se corre da morte. Sentia aquelas bestas nos meus calcanhares. Bati em árvores, pisei em poças de água e lama. Lágrimas molhavam meu rosto já sujo de terra daquela maldita floresta. A noite parecia estar ainda mais fechada. Cheguei à estrada. Fui em disparada em direção ao ônibus e ao chegar na porta do carro ela estava fechada. Empurrei com toda a força que ainda achei em meu corpo. Uma daquelas mãos cadavéricas conseguiu me alcançar. Eu lutei para jogar longe aquele saco de ossos, mas não consegui. Estava desesperado, até que num chute abri a porta e cai ensandecido me esparramando pelo piso. Fechei a porta de qualquer jeito. Empurrando com força enquanto os dedos daqueles mortos insistiam em lutar. Finalmente a porta trancou.
Pulei para o banco no motorista e tentei desesperadamente dar a partida, mas a bateria estava gasta. Girei a chave e nada. Continuei tentando. Um mar de gente semiviva rodeava o ônibus. De todos os tamanhos, idade, sexo. Batiam famintos nas janelas. Quase rosnavam. Se jogavam nas laterais do ônibus e se desfaziam em podridão. Uma janela quebrou. Meu pânico só aumentava e finalmente o motor resolveu funcionar. Sai em alta velocidade. Atropelei o que vinha pela frente. O menino chorão explodiu no vidro da frente.
Sangue escorria pelos vidros. Eu precisava sair dali. Dirigi quilômetros cegamente tendo a lua para iluminar meu caminho. Perto de uma estalagem, um hotel velho, parei. Mas um sentimento de alerta já tomava conta das minhas decisões. Desci do ônibus com cautela. Corri para trás da parede dos fundos do prédio, e espiei pela janela. Ninguém. Entrei pela portinhola protegida por uma tela e atrás do balcão de atendimento encontrei uns óculos e uma bíblia caídos no chão. Quem quer que por acaso estivesse por ali tinha abandonado tudo e rapidamente. Ou se escondeu ou virou monstro.
As luzes estavam acesas o que facilitou minha busca por explicações, comida, qualquer coisa. Encontrei uma garrafa de água pela metade e rasguei minha garganta ao engolir em grandes goles o que restava.
A sala da recepção do hotel era minúscula. Um corredor escuro se abria logo ao lado da máquina registradora. Todas as portas fechadas. Eu não queria saber o que havia atrás delas. Mas precisava. Na primeira porta que abri encontrei um quarto completamente sujo de sangue. Respingos de restos humanos caiam do teto. Sangue pingava e um cheiro de podridão tomava conta do lugar. Fechei a porta imediatamente, com náuseas difíceis de controlar.
Fui para o outro quarto e o único cheiro era o de mofo que já estava lá antes mesmo de se pensar na existência de mortos-vivos. No terceiro quarto, também vazio, só olhei de relance. Ao fechar a porta ouvi lá dentro um som abafado. Um baque surdo. Meu coração acelerou de tal forma que veio até a boca. Abri novamente a porta e acendi as luzes. “Tum”. De novo aquele barulho dos infernos. Fui até o guarda-roupa lentamente. Como que esperando que pulasse lá de dentro o maior e mais sanguinário dos monstros de todos os tempos.
Quando minha mão encostou na maçaneta do armário, novamente o “tum”.  Pulei e olhei para trás. Vi um rosto me encarando. Gelei. Demorei a perceber que era a minha própria figura refletida em um espelho. Eu estava sujo de sangue. Tomado pelo medo. Voltei a me concentrar no armário. Num fôlego só abri a porta e lá estava ela. Uma menina de pouco mais de oito anos, encolhida e abraçada a um urso velho e encardido. O barulho era ela tentando abrir a porta.
Nos encaramos e ela chorava. Me inclinei diante dela e menti:
- Vai ficar tudo bem, disse calmamente.
Ali mesmo eu fiquei. Esqueci de ver o último quarto no final do corredor. Tranquei a porta frágil do quarto onde estava. Escorei uma cadeira na tentativa de dificultar o que quer que forçasse a entrada.  Puxei a menina de dentro do armário. Tentei secar as lágrimas dela, mas ela não deixou. Perguntei se estava sozinha e ela não respondeu.
O banheiro imundo de secreções ainda humanas e cheirando a mijo tinha toalhas encardidas penduradas. Peguei uma daquelas e limpei meu rosto. Lavei meus olhos, minhas mãos. Eu estava muito machucado e sujo.
A menina sentou em uma das camas e estava em estado de choque. Eu não ouvi mais nada. Nem lá fora, nem aqui dentro. Revistei o quarto todo, e achei estes papéis na pequena escrivaninha do canto. Escrevo neste momento minha história, sentado no chão, sem saber se alguém vai conseguir sobreviver a isso tudo. Esta noite eu preciso esticar minhas pernas, curar minhas feridas, mas não posso cair no sono. Se eu dormir corro o risco de parar mais uma vez naquele local onde mora o medo. Onde flutuei sem ar na escuridão. Se bem que agora não faz a menor diferença. O medo está aqui comigo. Lá fora escutei um grito abafado. Eu e a menina nos olhamos e decidimos em silêncio deixar pra lá. Estamos cansados, famintos, em pânico. Somos um nada. Nos encolhemos. Ela na cama e eu aqui no chão. Vamos ficar assim até o dia amanhecer. Ai pensaremos no que fazer. 

* este texto foi classificado num concurso e está em um e-book.para ter acesso ao e-book é só clicar aqui:  
http://www.livrodestaque.com.br/concurso_cranik_2012.pdf