quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Convidado Sidney de Aguiar


O DIA EM QUE OS HOMENS NÃO VIRARAM CINZAS
 
Neste celebrado dia as pessoas acordaram cedo, partiram para os postos de trabalho com toda a convicção de construir um futuro coletivo e justo para toda a comunidade.
Ninguém foi ao trabalho de automóvel ou de metrô, todos almejavam contribuir com a diminuição da poluição em nosso planeta. Montados em bicicletas, pedalavam cantarolando músicas infantis. Os operários cruzaram os braços reivindicando mais um Carnaval fora de época. Os estivadores e os bancários fizeram coro pela mesma pauta. Os agricultores tomaram vinho com a certeza de colher uma safra de farturas.
As famílias tinham na mesa pães deliciosos para o desjejum, havia leite, frutas frescas e sorvete  de cupuaçu e todos estavam se amando verdadeiramente, sem mágoas no coração. Isentos de mágoas por  causa da última discussão entre maridos e esposas.  
Os estudantes corriam radiantes em direção às salas de aulas, se apressavam para abraçar com carinho e respeito seus professores na porta da escola. Nunca é tarde para aprender.
A cidade transpirava uma euforia tremenda, foi só os sabiás ensaiarem as primeiras notas do seu cantar, que surgiu descendo a ladeira a divertidíssima caravana do Circo, anunciado pela música divertida de uma fanfarra.
As crianças perseguiam os saltimbancos recém chegados.
Malabaristas, engolidores de espadas, domadores de leões, trapezistas, lindas dançarinas, a Mulher Barbada, Monga: a mulher - gorila, mágicos e suas cartolas fascinantes, elefantes africanos, camelos do Egito, focas, tigres brancos, macacos sulamericanos, cachorros adestrados da Rússia e é claro, os palhaços, estes artistas que fazem a alegria contagiante se tornar a marca registrada destas trupes circenses.
As flores, ah! As flores. As pétalas estavam mais viçosas e as cores perfeitas. A grama verde nas frentes das residências formavam mares esmeraldas. As árvores exibiam copas majestosas e carregadas de frutos maduros e comestíveis.  
Da orla podíamos contemplar os veleiros e as jangadas singrando o litoral. Estavam mais para barquinhos de papel ao sabor das ondas marítimas. As gaivotas sempre famintas por peixes, nesta data especial preferiram brincar de pega-pega pelos ares.
O vento litorâneo deixava o clima mais ameno.
No Boulevard, uma aposentada atriz de cinena dominicano ensinava os passos básicos do Zouk, ritmo contagiante do Caribe para os senhores e as senhoras da Terceira Idade.
Os casais enamorados amavam com mais paixão e os amantes saíram de suas casas carregando buquês de rosas, margaridas, crisântemos.
As poetisas eram pura inspiração, declamavam poemas em plena avenida e praças públicas. O tema principal era o amor. Ninguém tinha coragem de afirmar que o amor estava ultrapassado ou fora de moda.
Nesta ocasião única, houveram muitos enlaces matrimoniais. Dezenas de casais trocaram juras de amor eterno e as noites de núpcias foram muito mais intensas e inesquecíveis para os noivos.
Em tal amanhecer surpreendente, nasceram centenas de bebês. As mães se desmanchavam em lágrimas de tanta felicidade e os genitores comemoravam exaustivamente os novos rebentos.
Podia se ouvir melodias felizes em todas as casas. Os aniversariantes tiveram motivos em dobro para festejar tal momento. Aliás, receberam muitas mensagens de congratulações e presentes dados de coração, sem a intenção de receber algo em troca.
Foram horas de bençãos para todos os habitantes desta hospedeira cidade.
Na televisão os desenhos animados eram mais divertidos do que de costume. Ninguém queria perder os novos e os repetidos episódios.
No campo de várzea disputavam partidas de futebol com uma velha bola de borracha. Nas quadras comunitárias, os rapazes arremessavam na direção do aro, cada cesta era comemorada como um ponto decisivo em uma final de jogos olímpicos.
Nos períodicos matutinos não se anunciou um único crime sequer ou notícias de corrupção política. Nestas páginas estavam presentes apenas declarações apaixonadas, tiras de quadrinhos hilariantes e palavras cruzadas, daquelas de nível fácil que adoramos resolver.
As águas claras dos igarapés não tinham um único vestígio de contaminação. Estava ali, só precisava se agachar e recolher o líquido com a mão feita em concha e levar até a boca para saciar a sede.
O sentimento de inveja não tinha significado, a traição abolida dos dicionários, as mentiras não possuíam terrenos para serem semeadas e a palavra medo não era pronunciada.
Hoje é um dia especial, para ser lembrado por gerações inteiras. Os Historiadores escreverão relatos épicos sobre este período de paz e fraternidade mundial.
Nunca se experimentou tanta liberdade entre os homens.
Neste inefável dia, o Boi-bumbá saiu do curral com seu folguedo multicolorido, enchendo as ruas de toadas e lantejoulas.
Neste maravilhoso dia, o sol nascente surgiu com mais fôlego.
Neste inédito dia, o Enola Gay não levantou vôo e por isso, os Homens, as Mulheres e as Crianças não viraram cinzas. Cinzas que se desfazem com o sopro da brisa matinal...   

---


Sidney de Aguiar

Nenhum comentário: