quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Convidado Eduardo Ferreira Moura

Ninguém

              Todo babaca acha que exerce uma profissão muito peculiar. É uma regra, quase uma lei, reescrita pela fala do povo todos os dias:
    - Taxista não é mole.
    - Vida de pedreiro é fogo.
    - Você não imagina como é ser esposa de cirurgião dentista.
    Todos acreditam que suas funções têm peculiaridades que as tornam únicas em meio a esse oceano de ocupações inventadas para resolver problemas que não existiam antes das suas invenções. Assim, todos se disfarçam de ninguém. E ninguém é feliz.
    Sou ajudante de entrega há três anos. Não vou cair no erro fácil de dizer que a vida de ajudante de entrega não é fácil. Até porque seria mentira. Há peculiaridades, mas não posso dizer que esses três anos na boléia do Guido tenham sido exatamente difíceis.
    Guido é o motorista. Ele não é de falar, por isso gosto dele. Não sei se ele gosta de mim, porque ele nunca disse. Mas acho que isso é gostar, no mundo dele. Também no meu. Nesses três anos dividindo a mesma boléia em silêncio, posso dizer que a gente se conhece bem.
    Então o caminhão bateu. Acontece, às vezes. A gente roda dez horas por dia. Dessa vez era uma manhã cinza e chuvosa de terça-feira. São dias muito tristes, as terças-feiras. Nós paramos no sinal e um idiota não. O Chevette bateu na traseira do caminhão. Pelo barulho imaginei que nossa lanterna havia quebrado e que a frente do carro havia sido destruída.
    Guido olhou para mim. Entendi, em seu silêncio, que devia conferir o tamanho do estrago e conversar com o idiota do Chevette. Sabia que se Guido descesse da boléia o idiota do Chevette nunca mais dirigiria nada que não sua própria cadeira de rodas.
    Então eu fui. Ele nem tinha saído do carro ainda, um Chevette verde-oliva repleto de podres na saia da porta. Ao lado do sujeito, uma mulher enorme de feia e terrivelmente gorda reclamava de qualquer coisa, acho que da vida. O sujeito, então, preferiu descer do carro.
    - Mulher feia, carro velho... A vida não tá fácil pra ninguém.
    Eu disse.
    - Pra ninguém.
    Ele concordou sorrindo amarelo. Precisava ser sincero ou ele não me pagaria o prejuízo da lanterna. Quase chorou ao ver a cara amassada do Chevette. Olhava para o pára-brisa e via a cara amassada da gorda e sentia ainda mais vontade de chorar.
    - Essa lanterna é vinte pratas. Já quebrou outras vezes. Mas eu reparei que hoje tá sendo um dia difícil pra você. Me dá quinze pratas e o resto eu tiro do meu bolso.
    O homem esvaziou a carteira, mas pagou. Enquanto eu voltava para o caminhão, ele voltava para os braços de sua amável mulherzinha. Para montar na boléia é necessário subir dois degraus. Enquanto eu fazia isso, meus rins doeram e eu gemi. Tem sido assim nos últimos dois anos. Tomei meu lugar no banco e coloquei o dinheiro no console do caminhão.
    - Quinze pratas. Dez pra lanterna, cinco pra cerveja.
    Mas Guido não sorriu.
    - Dor nos rins?
    Fiz que sim com a cabeça.
    - A vida não tá fácil pra ninguém.
    Ele disse.
    - Pra ninguém.
    Concordei.



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Eduardo Ferreira Moura
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Um comentário:

Giovani Iemini disse...

este é um conto legal. diz mais do que parece.