Ninguém
Todo babaca acha que exerce uma profissão muito peculiar. É uma regra, quase uma lei, reescrita pela fala do povo todos os dias:
- Taxista não é mole.
- Vida de pedreiro é fogo.
- Você não imagina como é ser esposa de cirurgião dentista.
Todos acreditam que suas funções têm peculiaridades que as tornam
únicas em meio a esse oceano de ocupações inventadas para resolver
problemas que não existiam antes das suas invenções. Assim, todos se
disfarçam de ninguém. E ninguém é feliz.
Sou ajudante de entrega há três anos. Não vou cair no erro fácil de
dizer que a vida de ajudante de entrega não é fácil. Até porque seria
mentira. Há peculiaridades, mas não posso dizer que esses três anos na
boléia do Guido tenham sido exatamente difíceis.
Guido é o motorista. Ele não é de falar, por isso gosto dele. Não sei
se ele gosta de mim, porque ele nunca disse. Mas acho que isso é gostar,
no mundo dele. Também no meu. Nesses três anos dividindo a mesma boléia
em silêncio, posso dizer que a gente se conhece bem.
Então o caminhão bateu. Acontece, às vezes. A gente roda dez horas por
dia. Dessa vez era uma manhã cinza e chuvosa de terça-feira. São dias
muito tristes, as terças-feiras. Nós paramos no sinal e um idiota não. O
Chevette bateu na traseira do caminhão. Pelo barulho imaginei que nossa
lanterna havia quebrado e que a frente do carro havia sido destruída.
Guido olhou para mim. Entendi, em seu silêncio, que devia conferir o
tamanho do estrago e conversar com o idiota do Chevette. Sabia que se
Guido descesse da boléia o idiota do Chevette nunca mais dirigiria nada
que não sua própria cadeira de rodas.
Então eu fui. Ele nem tinha saído do carro ainda, um Chevette
verde-oliva repleto de podres na saia da porta. Ao lado do sujeito, uma
mulher enorme de feia e terrivelmente gorda reclamava de qualquer coisa,
acho que da vida. O sujeito, então, preferiu descer do carro.
- Mulher feia, carro velho... A vida não tá fácil pra ninguém.
Eu disse.
- Pra ninguém.
Ele concordou sorrindo amarelo. Precisava ser sincero ou ele não me
pagaria o prejuízo da lanterna. Quase chorou ao ver a cara amassada do
Chevette. Olhava para o pára-brisa e via a cara amassada da gorda e
sentia ainda mais vontade de chorar.
- Essa lanterna é vinte pratas. Já quebrou outras vezes. Mas eu reparei
que hoje tá sendo um dia difícil pra você. Me dá quinze pratas e o
resto eu tiro do meu bolso.
O homem esvaziou a carteira, mas pagou. Enquanto eu voltava para o
caminhão, ele voltava para os braços de sua amável mulherzinha. Para
montar na boléia é necessário subir dois degraus. Enquanto eu fazia
isso, meus rins doeram e eu gemi. Tem sido assim nos últimos dois anos.
Tomei meu lugar no banco e coloquei o dinheiro no console do caminhão.
- Quinze pratas. Dez pra lanterna, cinco pra cerveja.
Mas Guido não sorriu.
- Dor nos rins?
Fiz que sim com a cabeça.
- A vida não tá fácil pra ninguém.
Ele disse.
- Pra ninguém.
Concordei.
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Eduardo Ferreira Moura
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Um comentário:
este é um conto legal. diz mais do que parece.
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