sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Convidado Rafael Freitas

Mantiqueira


O alto da montanha
é mais próximo do céu.
Se as vacas fossem leves
voariam entre nuvens
cagariam feito pombas nos carros de passeio
pastariam toda a grama dos jardins do paraíso.

Estrume santo é o que seria.
Esterco bom pra ervas milagrosas,
poluição pros riachos do inferno,
solução pras terras pouco férteis.Link

O que salva o paraíso
é o que destrói o inferno.

Eu rolaria em bosta sacra
Pra sentir o peito em paz.

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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

gestação

Eleanor Davis

gesta-se a si mesma, indo contra a ideia de natureza do homem. e, dentro do inesperado, pare-se a si mesma, inúmeras vezes. são esses os ciclos da vida - dessa vez, no seu dentro. está no 105o trimestre de gestação (o relógio não zera a cada parto), e é gestante e feto. deve precisar e prover, ao mesmo tempo. possui a delicadeza e fragilidade do bebê que está por vir, e a força da mãe, que segura seus kilogramas e divide seu corpo, suas cavidades e seus órgãos, com outro ser (quanta intimidade). possui a força do feto (que se permite frágil), e a fragilidade da mãe (que se cansa como forte). coexistem.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Selvagens




Praia da Paciência. Para alguns, a do Jó.
Revoada de animais revoltos
qual “Os Pássaros”, de Hichtcock.




Cercam a mim e pessoas próximas e nos bicam selvagens, sem dó.
O porquê? Ao mar, bóia o lixo e a tralha humana, entre si, envoltos
Da humanidade, o escroque.




Deixa pra lá. Os selvagens?
Somos nós.



Fotos: wikipédia

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Deficiência



“Deficiência - s. f. - Def.: toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função anatômica, fisiológica, psicológica ou intelectual.”


O carro passou por mim um tanto rápido - não que estivesse correndo, mas seguia em uma velocidade imprudente ao considerar que estávamos dentro do estacionamento de um mercado. Ao avistar uma vaga ali, tão perto da porta, o motorista não hesitou, engatou a ré e começou a manobrar o carro; Sendo a vaga bem ampla, a tarefa nem exigiu muito esforço.

Eu permaneci ali parado, observando - nem sequer atravessei a via. Não era a primeira vez que eu via aquela mesma cena: um sujeito apressado estacionando na vaga reservada para pessoas com deficiência; Mas dessa vez, fiquei tentado a observar todo o desenrolar, só para me certificar se o motorista, sozinho no carro, possuía ou não algum tipo de deficiência.

Enquanto eu seguia em direção à porta do mercado, o sujeito abriu a porta do carro, saiu, olhou por cima do ombro, na direção do guarda do mercado e, só então, fechou a porta e ligou o alarme. Aquele olhar de cumplicidade, seguido por um ar de impunidade, comprovou as minhas suspeitas: era mais um dos irresponsáveis, que provavelmente se diria com pressa ou desligado - quando todos sabem que o diagnóstico é o descaso.

As pessoas que entravam e saiam até chegaram a lançar alguns olhares de reprovação, tanto para ele quanto para o guarda do mercado, mas este, com medo de envolver-se em qualquer confusão e acabar por perder o emprego, fingiu-se de desentendido. Eu fiz o mesmo, olhei para ele e para o guarda, na esperança de que alguém tomasse uma atitude.

Vieram-me à cabeça todas as minhas omissões em situações similares, além de todos os olhares de cumplicidade e esboços de sorriso pela impunidade. Senti-me realmente um cúmplice daquelas atitudes, aceitando-as mudo - cego e surdo; Eu e todos os outros éramos incapazes de protestar. Foi então que decidi que dessa vez não, eu não ia deixar passar em branco. Antes de abordar o sujeito, cheguei à conclusão de que ele também tinha uma deficiência; Após cutucá-lo pelas costas, avisei:

- Moço, essa vaga não é reservada para quem possuiu apenas deficiência de caráter.

As palmas evitaram uma reação agressiva. Quanto ao constrangimento, que o levou a entrar no carro e partir meio sem rumo, espero que tenha sido a melhor forma de reabilitação.







Menção honrosa no 9º Prêmio Paulo Setúbal - Prefeitura de Tatuí - SP

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Pássaro de Folhas


Encantada fada verde
Espalha vida e me ensina.
Voa da minha janela
Contemplando o azul, a lua, o sol.
Adensa-me as raízes o teu voo
Pássaro de folhas,
Fada Verde Macieira
Se lançando ao ar.



foto: Angela Gomes.

búúú

Como um típico sem autonomia, sou alguém caminhando até a porta da casa da mãe. Sinto-me debilitado. Com minha última depressão, é como se eu tivesse ficado com a cabeça plantada em um balde cheio de merda aguada, não podendo respirar por horas. Giro a maçaneta – pois o costume é de se deixar a porta aberta. Ao vacilo um cheiro de urina se exala de toda a parte. Meu estomago se vira, dando-me a sensação de algo errado. Vou me arrastando levando os jornais petrificados amarelados com urina por todo o espaço. Alcanço o sofá e sento-me. Percebo uma nuvem de poeira e pêlos se erguendo ao meu lado por um feixe de luz que reflete da persiana. Ouço o barulho de um ponteiro a cada segundo. São dez e meia da manhã. Recosto e medito. Um cachorro negro e cego vem até mim. Percebo que ele é cego quando bate com o rosto em minha canela. Ele me parece bastante debilitado. Identifico-me com ele. Ergo a mão para acariciá-lo. Ele se assusta e gira, tenta encontrar alguma coisa, mas só o que ele faz é se bater em tudo. Fica assustado e late. Mi madre grita “cala a boca!” lá do quarto que não enxerguei. Ela ainda está deitada e não quer ser incomodada. Ouço latidos vindos de lá também. São os outros animais ao perceberem movimentação. O cachorro negro começa a chorar. Mi madre grita novamente “Gordo, cala a boca!” Gordo sossega em um canto. Espirro e observo, então, o relógio. Mais latidos, dessa vez, sem motivo e, decido ir ao banheiro. Tentei não arrastar os jornais, observando cada passo, levantando os pés para driblar onde tinha urina. Piso em um excremento canino coberto por uma folha de jornal. Ele é macio. Chego ao banheiro e olho no espelho. O que eu vejo não me alegra. Devidamente levanto a tampa e miro no centro da privada. Motivo de ele ter permanecido durante tanto tempo ali amassado embaixo da cueca, talvez, foi que o jato saiu torto. Acertei o lixo ao lado. Seguro a urina, faço uma massagem e recomeço. Agora sim, consegui. Jogo uma água no rosto e desejo que tudo vá à merda. Volto, prestando o dobro de atenção, a fim de desviar qualquer coisa. Sento-me no sofá. Poeira, caos. Gordo se deitou num canto. Tita ao meu lado, no sofá. Ela tem câncer. A mais velha delas, das três. Metade de seu corpo está despelada, e nódulos gigantes crescem a cada dia na região mamária. Também há uma ferida que virou uma bolha. Não posso fazer nada para ajudá-la. Ao menos tento. Pego um saco de ração que vejo em cima da mesa e a sirvo. Ela agradece, levantando a cabeça e olhando os meus olhos. Volta a recostar-se. O relógio fica mais alto. Ouço o ponteiro cada vez mais alto. Tita ergue a cabeça e pega um grão da ração. Eu a amo, e faço carinho em sua cabeça. As outras duas cachorras não saíram do quarto de mamãe. Ficaram lá. E eu aqui. Ouvindo os ponteiros. Poeira e caos.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Convidado Walter Bezerra

Os princípios etílicos do boêmio

O verdadeiro boêmio não bebe para esquecer, mas, vez e quando, bebe a memória.

O verdadeiro boêmio não é um bêbado contumaz, não bebe para se embriagar, mas para venerar a noite e as suas benesses.
O verdadeiro boêmio não é só aquele que dá de bom grado a gorjeta ao garçom, mas aquele que também o presenteia com um bom disco de Noel, Vinícius ou outros tais.
O verdadeiro boêmio tem cadeira cativa em todos os botecos onde se faz indispensável e desejado.
O verdadeiro boêmio não tolera bate-boca nem disse-me-disse. Ele pode até beber fiado, mas se abstém de conversa fiada.
O verdadeiro boêmio não senta à mesa cuja principal iguaria é a vida alheia, mas lhe cai bem banalizar os canalhas e velhacos que usurpam o país e se aproveitam da embriaguez política do seu povo.
O verdadeiro boêmio nem sempre canta ou toca qualquer instrumento, mas sabe como ninguém interpretar a beleza nostálgica de um Tango para Tereza.
O verdadeiro boêmio não é um “malandro”, mas um idolatra que celebra a vida e ressuscita, a cada golada de pinga, cerveja ou uísque, uma boa sacada de igual boêmio como Mário Lago: “Quando deixarmos de ter esperança, é melhor apagar o arco-íris”.
O verdadeiro boêmio não polemiza com os que se dizem donos da verdade, simplesmente porque ele não cobiça ter 51% das ações de soberba nenhuma.
O verdadeiro boêmio pode até esquecer a primeira namorada, jamais a “saideira”.

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Walter Bezerra
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sábado, 10 de setembro de 2011

Convidado Eurico de Andrade

Namoro em tempo de frio

Zé Mané sai de Tabuí. Baile na roça. E arruma namorada. Fazendeirinha bem ajeitada, novinha, limpinha e cheirosa. Moça muito distinta e recatada.... Tantos predicados deixaram o Zé na maior paixão.

- Se ocê quisé memo namorá ieu tem que falá com o pai.
O rapaz fica desanimado. Mas depois de alguns dias, várias noites sem dormir, conclui com seus botões:
- Ela é moça boa demais da conta. Vô lá resorvê o pobrema.
Mandou recado. Vestiu a melhor roupa, calçou botina gomeira e foi rever a paixão e enfrentar o velho, futuro sogro. Andou horas e horas até chegar ao destino. A família recebe bem o nosso Zé Mané. Velho pega na mão, bate nas costas, velha o chama de meu filho, paixão fica segurando sua mão e as três irmãs se derramam em sorrisos. Tudo era ânimo. Os dois apaixonados combinam, num momento em que conseguiram ficar a sós, que a conversa de homem pra homem seria no dia seguinte, na hora do almoço.
Tudo muito bem, tudo muito bom, noite chegou. Era junho. Tempo de frio. O Zé, como não previa passar a noite em casa alheia, nem uma blusa trouxera.
- Tô sentino frio não, gente! Sô assim memo, num sinto frio!
A desculpa não colava, mas o rapaz não queria dar o braço a torcer. O negócio era impressionar. Queria dar uma de macho e, no seu conceito, macho que é macho não sente frio.
A moça mostra-lhe o quarto e leva-lhe cobertores.
- Não, amô! Carece disso não. Nem lençor eu uso! Durmo só de cueca!
Donzela ficou corada ao ouvir essa palavra de baixo calão.
- Mas assim cê intangue, bem!
- Que nada. Tiau, amô! Té manhã!
Zé Mané fica sem os cobertores tão quentinhos. Tira a roupa e, para honrar a palavra, fica mesmo só de cueca esperando o sono chegar. Mas o frio tava brabo e ele, tremendo, não consegue pegar no sono. Rola pra lá e pra cá, com raiva da sua burrice, até que se lembra do monte de palha de feijão lá no terreiro da sala. Pula a janela e tafuia dentro do monte pra afugentar o frio que lhe entrava até os ossos. E, de fato, lá embaixo tava tão quentinho que ele dormiu sono profundo. Tão profundo que o dia amanheceu e ele nem tium. Continuou lá, encoberto, só com a ponta do nariz num buraco por onde entrava o ar. Lá fora, tudo gelou por causa da geada que chegara de madrugada.
O pai acordou, mãe também e as quatro filhas. Sol mal dava as caras.
- Bamo lá botá fogo na paia de feijão pra mode a gente esquentá, mininas? Chamou o pai.
E lá se foram e meteram fogo sem dó nem piedade na palha de feijão. O fogo rodeou o monte, pegando com certa dificuldade, pois tava meio úmido devido ao orvalho. Por isso o fumacê que começou a sair dali não tava no gibi. E aquela fumaça foi entranhando pro meio do monte e o calor do fogo também. O Zé Mané, ainda dormindo, começa a ficar prejudicado pela fumaça e pelo calor. Sufocado e suando, acorda. Sem entender nada, o instinto de sobrevivência avisa que ele tem que cair fora. Assustado, dá um pulo, fica de pé levantando cinza e fumaça e o fogo começa a chamuscar-lhe a pele. Zé Mané sai correndo empretecido, quase pelado, só de cueca vermelha desbotada, levando junto um canudo de fumaça e fogo. As moças, cada uma mais santa e donzela que a outra, são pegas de surpresa e não entendem nada. Nem reconhecem o moço. E vendo aquela figura estranha e inesperada saindo do meio do fogo, caem de joelhos, prontas para rezar, pensando estar vendo coisas do outro mundo.
- É o demônio! - Gritou uma.
- É o capeta, mãe! - Gritou outra.
- Livrai-nos Deus, Nosso Senhor! - Berrou a mãe.
Zé Mané nem no quarto passou. Cheio de vergonha, ainda sem entender direito o acontecido, se mandou estrada a fora e só foi descobrir que estava nu ao entrar em Tabuí, sendo vaiado por um bando de moleques.

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Eurico de Andrade
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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

PEÇO PERDÃO AO ZICO


PEÇO PERDÃO AO ZICO


1981
Flamengo Campeão do Mundo
Zico, Junior e Cia...
Lembro do frenesi pós-conquista
Foi quando entendi alegria de massa
Pessoas rindo na rua
Cidade colorida em vermelho e preto
Uma lembrança quase igual
No sentido contrário é claro
Ao terceiro gol de Paulo Rossi em...
Deixa pra lá
Lembro de pessoas chorando nessa data
Também em 82 foi o segundo Campeonato Brasileiro do Flamengo
Depois veio o Brasileiro de 83
Era eu um Flamenguista de fanfarronices infantiloides validadas em farras primárias colegiais
Em 1987, Bebeto marcou na final contra o Internacional.
Lembro do Fernando (creme craquer) Vannucci chamando a matéria no Bobo Esporte
Flamengo Tetra Campeão Brasileiro
Eu?
Eu nunca tinha ido ao Maraca
Era eu um Flamenguista de festa
Sendo assim
Não lembro o gol de Cocada no Carioca do ano seguinte
Lembro o gol de Maurício, em 89.
Quem não lembra?
Pense
Meu pai queria que eu fosse Botafoguense
Imagina esperar tantos anos pra zoar os amiguinhos do colégio
Zico livrou-me disso
Devo desculpas ao Zico
Nunca o vi jogar no Maracanã
Como eu disse
Eu era Flamenguista de segunda-feira
Não acompanhava o dia a dia do Flamengo
Gostava de ser Flamengo pra atazanar meus coleguinhas
Nunca lidei bem com derrotas
O Flamengo deu-me segundas-feiras estudantis gloriosas
Tirando o gol do Mauricio é claro
Confesso nada ter mudado em mim essa derrota pra cachorrada
Até fiquei feliz por meu pai
Um dia, o Botafogo tinha de comemorar a maior idade civil.
...
Em 1991, já com 17 anos, fui entender o sentimento Rubro-Negro.
O Ser Flamengo
O Sangue Vermelho e Preto em minhas veias
O jogo?
Flamengo e River Plate
Supercopa dos Campeões
Maracanã
Inesquecível
Minha primeira vez no maior do mundo
Lembro muito bem
O Flamengo foi eliminado nos pênaltis
Junior perdeu um
Nesse dia, virei Flamengo de verdade.
Flamengo de Maracanã
Flamengo de coração
Desde então, sou Flamengo fanático.
Nesse dia, entendi.
Uma vez Flamengo

Flamengo até morrer


Pablo Treuffar
Licença Creative Commons
Based on a work at http://www.pablotreuffar.com/.
A VERDADE É QUE EU MINTO

A VERDADE É QUE EU MINTO

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

sibila


no meu céu de baunilha
flutuam mentiras azuis
ladeadas pelas sereias decapitadas

o mesmo céu onde o criador vigia
escondo-me na folha branca

nesses versos ateus
lilith pisca o olho
serpenteia pela rua
flertando com evas dispersas
rebola fantasticamente
sorrio e rabisco armaduras

ela as ignora
enrosca-se às minhas costas

pensamos beijos-tempestade
abraços-nuvem
marasmos sem fim
sibilamos feitiços pagãos
pele e mar sob a lua santa

sorrio na rua vazia
delírio findado
ficam os dentes

metade do meu sorriso é dela
serpenteamos juntas

lilith e eu
poetisas enfastiadas trancadas em prosa e
em verso enoveladas

sábado, 3 de setembro de 2011

mortal

todos os meus poros agrupados
são gametas impunes
e assim como meu coração
habitam meus olhos

quisera que me tocasse a vulva
como me desfere seu olhar
muito mais que sua boca
mais profundo que seu falo
é o invisível imagético
que nos prende nesse laço

essa pele já não me protege
do externo e já não deseja
ser indivídua
quer ser alvejada, aferroada
rasgada e carcomida

para que me travestir pura
se a mulher ancestral berra
mesmo silenciosa e inculta
dá-me o que é de febre
encolha-me ao que há de profano

que ainda serei eu a chamá-lo de meu
mesmo que por poucas horas
pouco tempo, tempo algum
nem ao menos isso.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

conselho

ufane-se
da honrada conquista
mas não afane-se
da celebração humilde
pois fana-se
o brio no auto elogio