domingo, 29 de maio de 2011

Falaria sobre a morte algumas bobagens

Eu mal sabia o que era a morte a uns anos atrás. Poderia classificá-la entre os mitos e fábulas aos quais ouvíamos atentos, sentados em roda. Me contaram sobre o curupira, o saci-pererê, e que um dia a vida de todos teria um fim. Em conformidade às autoridades, acreditei. Mas, em segredo, duvidava, não havia como não duvidar. Eu presenciava tanta vida ao meu redor: eu só crescia, e meus pais sempre iguais. A horta crescia, meus irmãos se graduavam, eu ia para a segunda-série (e até onde minha vista alcançava eu tinha muitas séries a cumprir). A vida aparentemente era eterna, e seguia para algum lugar grandioso. A lista de compras sempre cheia, almoço sempre na mesa.

Até que enterramos meu vô Jorge, meu querídissimo vô Jorge. Era parte da minha vida chegar em sua casa nos finais de semana, e à primeira vista de minha presença, o velho Jorge ia logo ao seu quintal, lindo e florido, catar um vistoso maço de espinafre para mim e me presentear nutrientes para a semana toda. Eu não gostava de comer, e bolinhos de espinafre com banana eram um dos meus poucos quitutes preferidos. Na minha família, comida e amor são o mesmo.
Enterramos o vô, então entrei num mundo antes completamente desconhecido. Eu desconhecia todo e qualquer ritual acerca da morte. Aprendi que o certo seria dar os pêsames (e recebê-los de tantos desconhecidos). Meu pai e meus tios tinham tantas coisas a resolver, tanto seguia a morte. Avisar os familiares, ligar para a funerária, pagar (como pobre faz pra morrer?). Eu não sabia o que era um velório, e quando descobri achei bem macabro. Entre um cafezinho e outro, ficamos horas sentados ao redor do corpo do meu avô. No interior de Minas Gerais ainda se contrata carro de som para fazer anúncios pela cidade, e enquanto íamos resolver coisas de funerária, cartório, e outras burocracias inoportunas, cruzávamos com um chevette velho dizendo em alto e bom som: meu avô era morto.
Seguimos em procissão até o cemitério, pelas ruas da cidade que meu vô conheceu menino, meu pai ajudando a carregar o caixão, e então vi meu pai chorar a morte do seu. Pela primeira vez aquilo não me dizia respeito, meu pai não me dizia respeito: era apenas um filho, recém-órfão de um pai. O que aconteceria depois daquilo, eu não sabia. Somente acompanhava a procissão, então o caixão foi coberto por concreto. Nada daquela terra bonita de cemitério de filme - ali era cheio, quente e cimentado. Uma família inteira chorando e um trabalhador concretando meu avô para sempre. Ao final, viramos nossas costas ao meu avô, meu vaqueiro e vô Jorge, e fomos pra casa do vô, sem o vô. Ver aquele concreto cobri-lo e virar as costas foi das coisas mais difíceis que fiz.

Depois perdi minha vó, meu outro vô, minha amiga e minha mãe. Aquilo que não conhecia até então se tornou minha vida; a morte era a minha vida, e eu convivia com ela diariamente. Cada ida ao hospital, cada resultado desanimador de exames repetidos, tudo era um pedaço da morte que se aproximava. Há uma certa facilidade em viver a morte quando esta é óbvia; outra história é vivê-la em vida, em conjunto. Eu e minha mãe vivíamos sua morte, ao mesmo tempo em que aproveitávamos tudo que sua maquinaria metabólica, enquanto funcional, nos permitia: abraços, eu te amos, noites estreladas nas areias de Pernambuco. Trocamos palavras de carinho e conforto, manhãs de domingo, e em cada gesto nosso lia-se amor. Aliás, sentia-se amor, físico. Com sua morte redescobrimos a vida, e a dividimos por alguns dolorosos e bonitos anos.

Recentemente uma amiga perdeu um dos seus, seu irmão, de maneira trágica e repentina. Fiquei triste, e sem palavras a alguém com quem trocava tantas. Uma expert em morte, eu agora saberia o que dizer, mas não. Fiquei sem palavras, e cheia de sentimentos e pensamentos. Revivi minhas perdas, e os aprendizados que elas talvez teriam me presenteado.

Com a morte aprendi algumas coisas, todas inesperadas. A primeira delas é que a sua vivência não vem acompanhada de entendimento algum. Seria bom se fizesse sentido, mas não faz. Não há sentido em uma pessoa estar ao seu lado em um momento e no instante seguinte não estar mais. Esse acontecimento não cabe no nosso entendimento. Não há nada comparável em nossa experiência; sabemos do fato, sabemos algumas consequências, mas não necessariamente o compreendemos. E a vida não pára, mesmo sem entendermos. Sim, ainda temos que ir ao cartório, agora sem mãe. O que isso significa, não sei.

A vida continua absolutamente igual e completamente diferente, ao mesmo tempo. A bolsa da minha mãe seguiu na cadeira onde estava, mesmo quando deixou de respirar. Nossa cadela ainda sentia fome e precisava ser alimentada, os pratos na cozinha eram os mesmos, seus suplementos alimentares continuavam na geladeira. Nada além de seu corpo havia ido embora, mas isso foi o suficiente para que nada mais seguisse como era - o que a falta de um metabolismo funcional é capaz de causar. Os pratos eram os mesmos, comer não. Eu era a mesma; minha vida, não.

Eu aprendi que a vida não é infinita. Acreditar nessa fantasia tornou-se, no mínimo, improvável. Seu fim é inevitável, apesar de nossos esforços. Essa incapacidade de controlar fica, a pessoa vai. Entende-se como nunca o fato de não termos controle. Isso facilita viver com a morte - não há outra opção. Continuando vivos, a única opção é sentir saudades, e viver esse mundo que não parou porque você perdeu alguém.

Os dias seguintes serão ruins, mas nada que você não dê conta. Se tiver sorte, o ato também não será tão ruim, poderá até ser impresso de uma beleza como poucas vistas. Uma calma, uma beleza quase palpável caiu sobre nós, e não houve outra opção a não ser percebê-la. Na concretização de um dos meus maiores pesadelos, eu achei tudo bonito. Era grande o amor naquele quarto, nada me importava além de seu conforto nesse seu processo, eu queria que minha mãe fosse bem. Disse a ela em seu ouvido que ficaria bem, e a amava. Que poderia ir tranquila e feliz, e ela foi bem. Em uma das nossas maiores declarações de amor, ela confiou em mim, que eu faria uma bonita vida, mesmo sem ela. E eu a deixei ir, feliz pelo fim de sua dor, minha única preocupação. O feio veio depois.

A morte não se restringiu àquele momento da falha dos órgãos. Ela segue acontecendo, dia após dia, no que parece se suceder para o resto de nossos dias. A morte é mais presença que ausência. Será sua companhia, se fará presente quando menos esperar, tomará outras cores e formas. A perceberá em vários momentos, como quando procura por uma receita de bolo. Não poderá mais conversar com o morto. Jamais saberá como estaria; ele jamais saberá como estás. Assim sendo, a morte é um pouco sua também. Ela cristaliza duas existências: a sua e a outra. Também fui com minha mãe, e tudo que é feito hoje é pura reinvenção, com doses cavalares de coragem.

Ela será sua maior companheira, mas não poderá falar dela. Essa grande parte de você é um tabu. Então, que esses segredos todos fiquem entre nós. Podemos deixar alguém desconfortável. Converse com amigos em comum com a dona morte, reúna seus amigos órfãos e faça piadas sobre como seus companeheiros não terão problemas com as sogras e sogros. Dê boas risadas, porque não há nada mais mesmo que possa fazer. Se o fim é inevitável, divirta-se em qualquer pedaço de caminho. Aí levante-se da mesa de jantar, escove os dentes e coloque seu pijama. Vá dormir, que amanhã começa um novo dia.

3 comentários:

Anônimo disse...

Descobri o blog agora. Achei belíssimo o texto, me vi nele em vários momentos, sou de Abaeté, interior de Minas, lembro da minha primeira morte em família, da dor, da sensação de estranheza, impotência, de ver meu pai chorando pela primeira e única vez... do sistema de auto falante da igreja anunciando na cidade a morte do vovô... e no velório achei estranho todos comendo, falando, contando piadas e o meu vovô lá, deitado...

Enfim, li e me emocionei...

Abraços,

Allysson Oliveira
allyssonoliveira@yahoo.com.br

Anônimo disse...

Reli o texto... vi que comentei minha experiência infantil. Depois do vovô tantos se foram, parentes, amigos dos meus pais, meus amigos.

Hoje sou um quarentão e estou, claro, mais perto da morte do que quando criança.

Ela que fascina uns ainda é pra mim algo misterioso, com doses de desconforto.

Jim Morrison dizia não temer a morte, que a vida dói mais. Eu tenho meus medos...

Nunca deixei de pensar na visão do meu pai chorando ante a morte do vovô... meu pai enfrentava qualquer coisa, meu superherói infantil...

Acho que temo a morte... e como dizia Rubem Braga: "como passam os anos"...

Por outro lado ao pensar na imortalidade me lembrava de um filme onde o personagem imortal via todos os entes queridos e amigos morrerem. No fim ele estava vivo e só. Isso me assustou também.

Quase 8 da manhã, estou saindo do meu plantão e acho que preciso beber algo. Vou divagar com meus botões um pouco...

Allysson Oliveira

Mônica Padilha disse...

Linda!! como é bom colocar os sentimento para fora em forma de palavras. Você faz isso maravilhosamente bem!