sexta-feira, 30 de outubro de 2009

por certo os sertões

nascem no planalto central
e se alastram por veredas
desertas e belas
onde racham
sovacos de pernas
e cotovelos de pedras.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Fruto Novo

Ar novo que oxigena o todo
renovando som ecoando
preenchendo o vazio de cores
formando arco íris no céu
após tempo tão incerto.
Noite de céu estrelado
com brisa refrescando ;
lua cheia no céu
depois de tarde de sol e calor intenso ;
dia novo no horizonte
após madrugada cinza
Eis que assim a vida se mostra
descortinada
depois de ausência tão prolongada,
simples encanto
de encontro sutil
rápido porém,
tão impregnado
não somente dessa saudade doída
mas de esperança
de dias cheios
dessa nova florada
que anuncia fruto novo
após espera que ate pareceu
não teria mais
fim.
Reflexo 2304131209

Catiaho Reflexo d'alma

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Notícias Populares

O mau poeta acossa a musa.
Não admite recusa,
nem se conforma com um “não”.
O mau poeta não desiste:
protocolo, formulário em três vias,
requerimento, recurso — em vão.
Ataca, então, rasga-lhe a blusa:
abuso em busca de poesia,
estupro à guisa de inspiração.
Crava os dentes no peito
ainda quente, embora inerte,
e suga até que repleto
do sangue que o seio verte.
Foge dali safisteito,
Pensando com seus botões,
“Agora me sai um poema que preste”.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Eco

CESAR VENEZIANI

sua ausência
me deixa na iminência
da demência
é silêncio que grita calado
é imenso gigante pesado

mesmo sendo ausente
seu nada se faz presente
eco em meu coração vazio
estio de tudo que prezo
rezo em revolta
volta, volta, volta, volta...

sábado, 24 de outubro de 2009

Ex-passo

Ex-passo


O poeta pode chegar à lua

na hora que bem-entender

visitar todas as constelações

ver uma estrela nascer e morrer

.

O poeta pode chegar ao sol

e junto com a terra, orbitar.

escrever poesia a vácuo

deitar e rolar no deserto lunar

.

O poeta pode ver as galáxias

viajar no espaço sideral

ver de perto o eclipse solar

participar da corrida espacial

.

seja nas nuvens ou imerso no mar

não importa qual seja o espaço,

O poeta pode nele chegar


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Mate

Desde o casamento, acostumou-se a ser tratada como uma rainha, ia para onde quisesse, quando quisesse. Quase todos os desejos lhe eram atendidos, com exceção dos que revelava apenas entre quatro paredes. No entanto, devido às regalias, as dificuldades do marido pouco lhe incomodavam até aquela tarde chuvosa.

Ao arrumar as gavetas, para evitar que os velhos pijamas embolorassem, encontrou as cartas e bilhetes perfumados. Descobriu naquele momento que ele só se interessava pelas outras rainhas.

Tomada por ira, desgovernada, deixou-se levar pelo primeiro peão que cruzou pela casa.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Ex(cripta), nas estrelas?



Casou-se com um arqueólogo que a trocou por outra múmia. A caminho do Egito, para restauro, foi resgatada de naufrágio por pescador que teima haver encontrado uma sereia. Naturalmente enrolada, necessita de um oftalmo que a oriente para o ocidente, onde a sua alma repousa no sarcófago sem o seu grito, digo, mito.


Imagem: rosto da múmia de Tutancâmon (Foto: AFP)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Tormento

Naufragado em pensamentos
Me encontro quase afogado
Num mar de ilusões.
Clamo a Deus

Para alcançar

A terra vazia do silencio,

Onde a paz lá está.

Quadro "Tormento" de Cátia Rodrigues

Contato caty.vlc @ gmail.com

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ele em estado líquido.


(Foto: Fernando Rozano).


Ele em estado líquido.


Na canção um verso voa,

lamparina ao ar saudades,

e o verbo que conjugo

minha dor espanta,

faz viver presença,

rio que o coração

em mar transformou.

Sim, é amor.


Eliane Alcântara.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Morada Para Barbara

Morar numa canção de Chico
quando nada fizer sentido
se o problema for desgaste
recomendo uso de Buarque
mas se decidir por uma festa
divirta-se ouvindo o Cesar
Caso o problema seja desgosto
experimente um cd de João Bosco
Abstinência de toxinas?
dope-se com clube da esquina
Se for por falta de maça
encoraje-se ouvindo Djavan
Se for alguma desavença
faça as pazes ouvindo Alceu Valença
Se precisar da loucura de éter
substitua por doses de Cassia Eller
Se está preocupado se vacine
com sacadas e bom gosto de Lenine
Se o dinheiro estiver curtinho
churrasco na laje com Pagodinho
Se estiver farpado feito arame
sugiro descobrir Marco Vilane
Se acha que ninguém te gosta
sofra com pitadas de Gal costa
Se é problema passageiro
encare o relógio ao som de Baleiro
Se a ferida requer atadura
envolva-se na poesia de Cazuza
Se o incômodo for distância
Encurte-a na afinação de Betânia
Se acaso entrou pelo cano
aplique na veia Caetano
Se tá curto seu pavio
Medite com o senhor Gilberto Gil
E se a angústia for maior
suma um tempo feito Belchior
Se é ausência de faz de conta
recomece com Paulinho Moska
Se for coisa pequenina
uma faixa de Elis Regina

Mas se nada disso fez sentido
eu me recolho ao meu lugar
na mais linda canção de Chico
eternamente posso morar

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sonhos Entre Escombros


Ainda me divirto entre os escombros,
Ruínas de nossa civilização.
Construímos nossas próprias covas
Quando abusamos do mundo.

Sofro com nossa incompetência
Em fazer um mundo melhor.
Dizem que sou pessimista...
A realidade é que é péssima.

Ainda temos conhecimentos e prazeres,
Mesmo assim não basta para melhorar.
Para muitos sou louco por perceber
Que o mundo é um lixo há séculos.

Vivemos um drama, uma tragédia,
Ainda sobra energia para mudar.
O humanismo é uma grande solução,
Assim como a sofrida ecologia.

Entre escombros sonho com um mundo melhor, podem rir de mim.


- Mensageiro Obscuro.
Junho/2008.


Foto: Escombros da II Guerra Mundial.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Domínio


Nesta noite tão fria,
Partículas pulsam quentes em meu corpo.
Me torno imprevisível: instabilizo, devasto;

Afloro em potencial perigo,
quase desejável.

Mesmo assim
O frio insiste.
E me toca.

Do estado de dormência
latente que me encontro,
Posso passar ligeiramente
ao estado altivo do vulcão
prestes a uma erupção.

Mas com sua indiferença,
o frio conseguiu.
Me domar.

E o restante
da noite continua.

Tão frio.


(Ro Primo)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

quimera


"What's in a name? That which we call a rose By any other name would smell as sweet."
Romeo and Juliet (II, ii, 1-2)



Guardo tudo em arquivos ilógicos e anárquicos que nem eu mesma entendo. Estranhas conexões, símbolos absurdos. Guardei você, sua imagem, sob um desses ícones multicoloridos.

Outro nome, outras cores, mas é você.

Sabe como funciona: “Que há num nome? Aquilo que chamamos rosa com qualquer outro nome seria igualmente doce”.

Janelas ↔nuvens↔espelhos↔sonhos↔olhos tristes↔Kamikazes de papel!

Coleciono palavras e gosto de dançar com elas, me esconder debaixo delas. Você brincando distraído e rápido as decodifica. Devo ser fácil e óbvia demais.

Sorriso→sorvete→tarde→música→notas erradas!

Palavras e imagens caem sobre mim em largas e pesadas gotas.

Janelas→nuvens→espelhos→sonhos→olhos tristes→Kamikazes de papel!

Tudo fica absurdamente importante quando nada é tudo que se tem.

Sorriso→sorvete→tarde→música→notas erradas!




Sorriso→sorvete→tarde→música→notas erradas!

O menino sorri e me pede a caneta, ele precisa que eu lhe desenhe os olhos do homem-aranha, a adolescente resmunga e eu sorrio.

Janelas→nuvens→espelhos→sonhos→olhos tristes→Kamikazes de papel!

Seu sorriso surge na tela da memória, bem ali ao alcance da mão, ao alcance do beijo. Está bem ali transfigurado em símbolo de algo bom. É meu agora e eu gosto dele, mas e daí?Nada? Tudo? E daí? Ainda preciso desenhar os olhos do homem aranha e ou vir alguns resmungos importantíssimos.

Sorriso→sorvete→tarde→música→notas erradas!

Guardei você também, sorrisos e palavras, mas vamos combinar assim: Você não me decifra e eu não te devoro.

Janelas→nuvens→espelhos→sonhos→olhos tristes→Kamikazes de papel!

Estar sozinho também é Globalização

Estar só é igual em qualquer lugar do mundo.

Estar sozinho em Tóquio é exatamente igual a estar sozinho em Nova Iorque ou em São Paulo: tem as luzes, a música, você olha para a pessoa que está dançando com você, você sorri, dizem alguma coisa que você não entende, você pergunta o quê, repetem, você finge que entendeu, sorri de novo, acena com a cabeça. Você fecha os olhos e mesmo assim, através das pálpebras, percebe as luzes piscando.

Você pode ter chegado lá com a galera, você esperava uma noite alegre, mas – espera! – quem você conhece, de fato? Quem conhece você? Todas as noite são iguais, você quer se divertir, você poderia morrer de puro tédio.

É diferente de estar sozinho no alto de uma montanha, sentado no chão, abraçando os joelhos, olhando a paisagem, mas estar sozinho abraçando os joelhos no alto da montanha também é uma experiência idêntica no Morro do Elefante, no Monte Fuji ou em Aspen.

Isso é globalização.

Não há mais experiências únicas, nada transcende. Você não vai ter a Grande Revelação ao entrar num templo budista, nem ao ouvir o canto gregoriano no Mosteiro de São Bento, nem quando o coral do gospel vier lhe trazer a Palavra.

Você vai entrar na mesquita, na sinagoga, na catedral, vai olhar em torno, vai ver rostos humanos, rostos. Todos solitários. Você não vai se surpreender com nenhum ritual, nada pode emocionar você, tudo já foi visto antes, você conhece isso, você sabe como é, já viu no cinema, no Discovery Channel.

Você vai saber que não há salvação.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Anima Mundi


mundo
redondo

terra
como
cerveja
pétrea
gelada
diáfana

iscol

isca
tira-gosto
presunto
perdigueiro

perdigoto

perdigão
putrefacto
nimrod

caçador

caçado
morto
perdiz
assassina
menina

mulher

messalina

comandante
cabeça
pensante
mandante
coadjuvante
rompante
hidrante

hidratante

monange
desidratado
factóide
imaculado
são
bernardos
benedicti
beneditinos
encapuzados
touca
ninja
mal
criados

mudos

surdos

absurdos

estampido

projeto

projetil

achados

perdidos

busca

aleatória

besta

fera

círculo

vício

cego

vil

infecundo

óvulo

mundo.


Carlos Cruz – 08/07/2008

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O vestido



Odiava esperar as coisas acontecerem, mas talvez por um momento, pudesse se permitir ser levada pela força do vento, esvaziar seus pensamentos e deixar-se como folha avulsa que se solta, em idas e vindas lascivas.
Atordoada, não sabia se pela espera ou se pelo número de pílulas que tomara, Cecília entregava-se ao vento e como seu vestido de seda púrpura ela ondulava quase dançava. Aquela leveza tomava sua pele clara, sem a devida noção do tempo não distinguia dia ou noite, se aquilo era real ou se mais uma de suas visões.
Lembrou-se de César por um momento, parecia que nunca vivera sem ele, a impressão mais forte que tinha era que ele era uma constante em sua vida, mas com a mudança de vento, seus pensamentos mudaram de rumo.
Ateve-se ao vestido, olhava a disposição de suas saias e suas dobras, adorava aquele vestido, tinha vontade de dançar e sorrir. Em movimento de rotação, rodava sozinha e ria de si, quase que embriagada de nada. De tanto girar, sentiu vertigens e parou num movimento brusco. Ainda observando as dobras do vestido, como se a vida fosse só aquele pedaço de pano e tivesse dobras como suas saias. Como descobrir onde começa uma coisa e termina a outra? Haveria uma linha intermediária entre o contemplativo e o ativo? Olhar as saias a agradava, mas rodar para fazê-las se movimentar era infinitamente melhor! Sentia-se tonta, mas realizada, leve como uma pluma!
Apetecia-lhe vislumbrar as coisas, mas das esperas nunca gostou, eram angustiantes, quase entediantes.
Ouvia das pessoas a mesma reclamação, que era inconseqüente, impaciente, que se precipitava ao primeiro sinal de perigo, que feria para não ser ferida, fugia, para não se sentir pressionada. E quem não age assim, se perguntava.
Mas seria ela a única dona de seu destino? Será que tudo que lhe acontecera até ali teria sido apenas por suas escolhas mal feitas, ou por hora ter se tornado prisioneira de uma liberdade ilusória?
Finalmente estava no estágio que pretendia alcançar, a dormência, a gentil sensação flutuante de estar livre de qualquer amarra, tudo parecia ocorrer em seu ritmo próprio, o vento ganhava voz e sorrisos.
Seu vestido era roupa para seu corpo, para o vento não passava de um tecido, um obstáculo que teria que transpor para chegar ao seu destino final. As dobras eram transitórias, ao menor movimento do vento ou de Cecília se desfaziam por completo, sem marcas, sem rusgas.
Quem dera fosse livre como o vento, dona de seu destino, quem dera soubesse fazer as escolhas certas, quem dera não ter que escolher. Tudo parecia confuso e claro, não havia liberdade, apenas um simulacro dela. Mas por hora, estava feliz com seu vestido.
Por um momento pensou ouvir a voz de Otávio, seu corpo desabou, sentiu suas mãos suando e um desconforto vertiginoso. A voz perguntava:
─ Para que faz isso, Cecília? Quantas pílulas dessa vez? Não sei mais como posso te ajudar!
Ela só tinha vontade de rir, mas estava fraca demais para isso. Sentia raiva dele agora, queria ser esquecida naquele estágio, será que nunca a deixaria em paz?

domingo, 4 de outubro de 2009

Viagem Clandestina

Viagem Clandestina

Depois de seis anos trabalhando quase ininterruptamente, eis que vi na minha demissão a oportunidade de ouro de fazer uma viagem (pobre é assim mesmo, só viaja com o dinheiro do acerto ou para correr da seca). Escolhia entre vários destinos possíveis: Caximbó do Aterro, São João da Piriquituba, Taiobópolis e por aí ia, quando meu amigo Batata chegou quase quicando:
- Aí, fiquei sabendo que você tá querendo viajar!
- Querendo não, eu vou passar uns dias no interior, descansar, pescar, sei lá.
- É o seguinte: estamos, eu e o Juvenal, ajeitando para ir para a fazenda da tia-avó da prima da cunhada da minha irmã...
- Como é que é?
- Enfim, a fazenda é de alguém conhecido, tá afim de ir?
- Olha, eu não sei...
- Vai um monte de mulher junto. Só as gatas. – isso merecia uma longa reflexão.
- Que horas que vocês estão querendo sair?
- Sabia que você ia topar. Mas ó, tem que dar um dinheiro para rachar a gasolina.
- Ah, isso é o de menos.
Ajeitei “trintão” na mão do Batata e marcamos de sair no sábado logo de manhã. Estava tão animado para viajar que nem me importava do risco que corria; no geral, todo e qualquer programa idealizado pelo meu amigo sempre dava em merda. Sem contar que quando ele dizia “só as gatas”, na verdade se resumia a uma ou duas bonitinhas no meio de meia dúzia dos melhores canhões Krupp.
O sábado nem bem havia batido as sete da matina, eu e o Batata esperávamos nossa carona no lugar combinado. Diferentemente de outras oportunidades, tudo se materializou na mais perfeita ordem. Juvenal chegou na hora marcada, dirigindo seu valente Gol 1.8, ano 1995, inteirinho. E ainda por cima, cheio de mulher. E mulheres bonitas, na verdade, lindas! Aquilo era uma visão do paraíso:
- Irmão, tu é o cara.
- Sabia que você ia curtir. Vai por mim, essa viagem vai ser inesquecível.
O que deve ter sido inesquecível foi a cara que fiz ao saber do plano do Juvenal; como as três beldades ocupavam o banco traseiro, ele ia no do motorista e o Batata era passageiro-que-abre-porteira-e-conhece-o-dono-do-lugar, não restava assim nenhum espaço dentro do veículo para mim. Teria que ir de ônibus e eles me pegariam na rodoviária do povoado próximo. Era isso ou quando eu chegasse lá que arranjasse uma carona.
- Ó, é muito fácil. Todo mundo conhece a fazenda por lá, além do mais, é encostadinho na cidade, você consegue, safo como é.
- Sei não, Batata. E a grana que eu dei pro gás?
- Pois é, as minas tão meio na pindura, sabe como é.
Assim contra todos os meus instintos, lá fui eu de ônibus para o interior. Acomodado em uma das poltronas do fundo, saquei minha garrafinha de alumínio e tomei um belo gole de bourbon para acalmar os ânimos.
- O Batata me paga essa. Na volta ele é quem vem de busão. – Depois da metade da garrafa eu já dormia o sono dos justos e o dos injustos.
Acordei com o sol esturricando na cara. O ônibus, parado em uma dessas espeluncas de beira de estrada, estava com a tampa do motor aberta e cercado por peças, porcas e parafusos por todos os lados.
- É grave? – perguntei ao motorista que tirava uma de mecânico.
- Fosse gente – dito na pureza do sotaque soteropolitano - podia pedir a extrema-unção, visse?
- Batata, seu filho da mãe.
- Cuma?
- Deixa pra lá. Continua com o moribundo aí.
Adentrei as espetaculares instalações da birosca sentindo meu estômago acordar. E pelo jeito estava em uma mal humor homérico. Esse negócio de biritar sem beliscar nada ainda assassina meu fígado. Talvez até leve o bucho junto. Decidi dar uma olhada nos petiscos; torresminho, kibe com ovo, salsicha empanada, pé de porco, coxinha; o colesterol nadava de braçada ali e ainda dava pirueta. Apontei o pote estranho no canto.
- Aê, que é isso?
- Batata em conserva, vai uma?
- Nem na bala. Vê uma coxinha e um kibe
- E para beber?
- Uma pinga. Melhor, põe logo duas num copo só.
- Para o abrir o apetite, hein? O dono da birosca dava seu “sorriso 1001”, onde somente dois incisivos apareciam, cada um no seu próprio canto.
- Não, é para ajudar a empurrar esse treco pela garganta.
Acho que ele não gostou muito da minha crítica culinária. Nisso uma longa fila de crianças, uma escada perfeita do menor ao maior, sai do banheiro e começa a pipocar pedido de “quero isso, quero aquilo” daqui e de lá. Se a coxinha e a pinga não me dessem uma baita azia, com certeza esses pentelhos conseguiriam. Resolvi ir para fora fumar um pouco e ver a quantas andava o conserto do ônibus. Ou o milagre da ressurreição. Olhava desanimado para aquele monte de peça espalhado pelo chão, quando um anjo travestido de gente abriu a porta de um Doblô estacionado ao lado: o cabelo louro esvoaçante, uma bata branca que revelava os contornos perfeitos de um corpo bronzeado, o provocante perfume que me agarrava pelas narinas, a hipnose dominadora daqueles olhos azul-acinzentados que incrivelmente se dirigiam para mim. Aproveitei a filmada para colocar meu charme de Bogart do Cerrado em prática. Saquei um cigarro com extrema maestria e colei com a divindade:
- Fogo? – dois minutos depois e ela estava quase me passando a senha do Orkut dela. Tenho que admitir, aquele curso de paquera por correspondência valeu cada centavo. Quinze de papo e já sabia que ela era viúva, tinha perdido o marido dois anos atrás, Gérson Ganso, ex-zagueiro do Catulense. Em meia hora, batuta, tinha descolado uma carona com a gata. Ia para a mesma direção, tava dirigindo sozinha, precisando de ajuda na condução, isso é o que chamo de sorte. Quando estava tascando a primeira beiçada, me vi repentinamente cercado pela turba de crianças que havia visto pouco tempo antes, dois casais loirinhos e um japonesinho perdido no meio – ela virou-se repentinamente e animada:
- Crianças, boas novas... – rodopiei-a – Irmãos?
- Filhos. – virou-se de novo – Este é o Juliano, ele vai viajar com a gente daqui para a frente. Esses são Gilson, Gelson, Gérson Júnior, Gilda, Gilvânia, e o Wanderley.
- Wanderley?
- É... O pai dele era nosso jardineiro – sussurrou.
Duas horas de estrada depois, entendi porque ninguém se arriscava a viajar com ela. A doida ia pela estrada como se fosse o Mister Magoo bêbado. Andava um pouco em uma faixa, um tanto bom na outra e seguia cantando junto com a gurizada.
- Eu arrebento o Batata.
- Que cê disse, amor?
A luz amarela, avermelhou naquele ponto. Nem tinha ido pro rala e rola com a gata e ela já tava me chamando de amor? E ainda por cima com aquela molecada cantando “com quem será” o tempo inteiro?
- Arrebentar é pouco. Eu mato o Batata.
Agarre minha garrafinha da sorte, tomando altos goles para ver se conseguia segurar as pontas. A doida aumentava o som do carro e ia gritando as música (aquilo não era cantar, não senhor) junto com os filhos, em um coro desafinado que lembrava o urro de uma manada de quatis com dor de barriga. Concentrei-me em imaginar diversas formas de tortura chinesa para aplicar em meu amigo Batata. Uma chuva fina que começou a vir de encontro a nós e rapidamente se transformou em uma tempestade torrencial, que não deixava ver um palmo à frente. Tentei dizer para a gata ir mais devagar, mas foi como se pedisse para enfiar o pé no acelerador; a estrada foi rapidamente ficando para trás, as crianças gritando, aquela música do fim do mundo, quando o carro começou a girar sobre o próprio eixo, totalmente desgovernado, quando atingiu as amuradas de uma ponte, me lançando no vazio. Ainda pude vislumbrar, enquanto era lançado janela afora, que alguns dos garotos rolavam de rir, achando achavam que aquilo era só mais uma brincadeira. Uns belos filhos da puta, esses sacanas.
E então foi o silêncio. E junto com ele um mar branco, cheio de nada, onde eu parecia flutuar livre de todos os meus medos e receios. Comecei a me dar conta então, que finalmente estava encontrando aquilo que procurei minha vida inteira. Eu estava começando a desfrutar da...
- Vai ficar esticado aí o dia inteiro?
Olhei para o lado e lá estava um senhor vestido de branco e que tinha uma cara engraçada, que pareceu se transfigurar do nada.
- Como é que é?
- Tenho um negócio para te propor. Uma proposta tentadora.
- Propor, o quê? Que estória é essa de negócio, se eu nem sei onde eu estou...
- Ai, ai. Mais um desavisado. É o seguinte; você tá tendo uma E.Q.M.
- E.Q.M. ?
- Experiência de Quase Morte. Era para você ter visto um túnel, vários parentes, o resumo da sua via, mas estamos em uma fase de corte de despesas (morre gente toda hora, o custo dessa parafernália toda é uma nota!), daí que pulamos a introdução. Pois bem, você sempre foi um cara mais ou menos a vida inteira, agora tá entre lá e cá...
- Mas o que realmente me aconteceu?
- Era para ser coração. Básico, rápido e um dos meus favoritos. Mas você se engasgou com um pedaço de coxinha.
- Quer dizer que eu tô morrendo?
- Isso mesmo.
- Ah, se eu morrer eu mato o filho da mãe do Batata! Peraí, quem é você?
- Já me chamaram de vários nomes: Caronte, Nhunhabá, Volstour... Agora me chamam de "o sacana de branco". Sou eu quem leva a galera de um mundo ao outro, bicho, chuchu beleza...
- "galera", "bicho", "chuchu beleza"?
- Pô, xará, os sessenta foram de lascar. Muito psicotrópico, sacou? Mas voltando aos negócios.. Mesmo você sendo um cara meio maneiro, a probabilidade de pegar o elevador descendo tá muito grande.
- E o que eu posso fazer para melhorar isso?
- Seguinte: tava precisando, não, na verdade, tô querendo pegar aquela dona do Doblô, a da mulecada, mas sem a mulecada, entendeu?
- Entendi. Mas se você pode tanta coisa, porque não vai atrás dela sozinho?
- Questão de horário, meu filho. Não tá na hora dela. E vi que você tinha um jeito especial de lidar com estes assuntos. Daí juntei uma coisa à outra.
- Bom, é que... – Será que minha honra começou a ter preço?
- Ah, vamos lá, você tem que me ajudar. – parecia que o velhote não via uma mulher há séculos. No fundo talvez isso fosse verdade, afinal das contas.
- Então você tem como me fazer voltar?
- Claro, seu futuro está muito incerto. Parece até que está sendo escrito por várias mãos. Nunca vi nada parecido. Posso dar um jeito de você voltar no momento propício.
- Mas se eu voltar e fazer esse acordo contigo, quando passar por aqui de novo, pego o rumo de baixo sem escalas, não?
- É verdade. Mas cê já tá quase lá mesmo. E aí topa?
Não me lembro se acenei a cabeça em um sim ou se disse alguma coisa. O que sei é que senti um puxão e acordei deitado em uma ambulância, sacudido pelo choque do desfibrilador operado por uma enfermeira ruiva e extremamente peituda.
- Sorte sua nós estarmos bem atrás quando aconteceu o acidente, gatinho – Eu estava a salvo. Por enquanto.
- E o pessoal do Doblô, as crianças?
- Estão todos bem. Se estivesse usando cinto de segurança, não seria jogado fora do veículo – ralhou com fingida raiva. No final ainda deu uma piscadela.
- Batata, brother – pensei – te devo uma, cumpadre.
Em outra dimensão, um velhinho vestido de branco e extremamente grilado gritava aos quatro ventos:
- Concorrência desleal, essa tal de tecnologia!

Conto escrito em partes na comunidade “Contadores de Causos” (nem todas elas utilizadas)
http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=21661322&tid=2491747672918963349

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Brincadeira Musical - Flá Perez

Chorinho e pede com jeito,
que fico Transversal,
pra tocar sua Flauta Doce
(de quebra seguro seu Sax).

Te deixo acordar
meus vários acordes e tons,
violar meu Violão.

Pra mudar de água pra vinho,
bate no meu Pandeiro
com a palma da mão

e me pede pra sambar devagarinho.

Depois aumenta o compasso
(ou deixa que o ritmo eu faço).

E se eu pedir pra parar,
se faça Surdo.

Continua o samba pela noite afora,
me faz suar em bicas,
até furar a Cuíca!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A sinfonia

Cofres com garras no lugar do coração, sangue feito de tinta cuja cor não é visível, cujo sangue não é palpável, mas é respirável, não pelos pulmões, mas pelo fígado, direto pros olhos. Estes sem lágrimas, seco, isento de sensibilidade à luz.

As mãos não lavam mais embaixo das unhas, não é importante, não é necessário, não é possível. Viraram engraxates de botas. Couro sintético que não eriça ao toque, anel magnético cujo pecado foi atrair o amor. Barganha de sentimentos, maldito comércio clandestino. Não há trocas, só ônus unilaterais de ambos lados.

Minha alma é morta, sou uma carcaça sem dentes, uma fera sem unhas, um sorriso sem face, sem classe, um impasse de ser o que não quero, e não poder escolher meus sapatos, minhas pegadas me foram impostas. Não são minhas digitais.

—Hoje eu não sou
—E ontem?
—Ontem eu era.

Tramitação involuntária da aorta na coluna vertebral. Paralisa as pernas quando apenas atacara o sistema nervoso. Sem pernas, sem pés. O tempo não passa mais, a vida não vive ais, é o calcanhar de Aquiles de Hades. No final das contas, eu perco de todo jeito.