domingo, 28 de junho de 2009

Olhos de fogo




Se pudesse olhar o tombo das coisas proibidas,talvez me permitisse alguma espécie de calmaria.Mas era um desenhista medíocre,com meus bonecos caóticos e alfinetes coloridos. Eu os desenhava na tentativa de capturar a natureza humana.
Quanta miséria nas minhas mãos de gelo e aço! Não havia outra saída para um imundo como eu, senão me disfarçar através de um jejum doentio. Não poderia contornar os olhos de minha irmã(na colcha de seda) ou as costas da menina que cruzava minha janela todas as manhãs.
Meu lápis era carrasco e viciado em bonecos tontos, que denunciavam minha forma automática de pensar.Como minha primeira mulher me deixara, me acusando de falta de sensibilidade e questionamento da vida.Sim,talvez eu nem sequer fosse podre,somente raso. Os alfinetes me atordoavam a pele macilenta e eu não podia ver sangue, mas um líquido esverdeado, denúncia da minha inanimação.
Minha irmã era religiosa e tomou profundo interesse pela minha abdicação aos hábitos alimentares:
- Está tentando purificar-se?
- Nada que o valha, deixe-me desenhar...
- Esses bonecos me assustam. Por que não me desenha?
- Sua vivacidade me assusta. Por que não some?
- Parece um tanto irritado. O que você faz para se controlar?
- Eu me purifico através do santo hábito da masturbação. Aliás é o que vou fazer agora, pensarei nos teus olhos...
- Você me dá nojo.
Algumas alfinetadas, oito bonecos e nenhuma lágrima, só a máquina de costurar da minha irmã, destruindo meus pensamentos. Tenho vontade de roer seus ossos, um pedaço da costela de Deus. Por que ela não me presenteia com uma focinheira? Atrevo-me a colocar uma vela sob a cabeça de um dos bonecos. Como se iluminados e vivos, finalmente eles esboçassem um sorriso, ousado,aterrador.
Eu poderia ter sido salvo naquele instante. Poderia começar a comer depois de semanas, sem nenhuma espéciede contato com o mundo que não fosse a presença perturbadora de minha irmã. Mas o universo conspirara mais do que minha suspeita poderia desenhar.
Adentrando o quarto, minha irmã, com seu trabalho de máquina de costura a postos: um vestido de bailarina e um capuz de carrasco. A sensação de que aquilo era uma alucinação, logo foi tomada pelo terror.E aquilo não era tudo. Ela tinha gasolina e fósforos. Estava decidida a por fim no meu trabalho,o que significava minha vida. Podia escutar o grito de meus bonecos nas chamas, em meio á musica que ela cantarolava febril. Fechando a porta, me mandou um beijo de fogo no ar, eu podia ver seus olhos ardendo de contentamento.Em um canto ainda seguro, com um toco de lápis desenhei este paraíso, os inebriantes olhos de fogo beijando-me e abri a boca para alimentar-me. Alimento das chamas, penso que nos últimos segundos pude desatar água dos olhos. Minha carcaça,ou o que restou dela, é um brilhante e doce manequim dos mais refinados modelos de minha irmã. Ela me ama. Terrivelmente.


Um comentário:

Muryel De Zôppa disse...

simplesmente perfeito!!!!!