terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A mulher no jantar de fim de ano

A mulher no jantar de fim de ano

Tinha um olhar forte, mas distante, rosto quadrado, que mais lembrava feições masculinas, não havia fragilidade nela, trazia um jeito simples, vestes sem grife, ou ostentação, mas parecia ser fina, educada. Caminhava altiva sobre os tapetes vermelhos que minha avó colocava para o Natal.
Suas olheiras salientes poderiam indicar noites mal dormidas, ou que perambulava pela casa a noite, olhos inconformados. Possuía algo que não sei explicar, era diferente, observei a noite toda, a maneira que acendia o cigarro, sua delicadeza ao levá-lo a boca, sempre muito formal, parecia isolada dos outros convidados e também atenta aos detalhes, como eu. Por vezes a vi divagando com a fumaça do cigarro, sempre aceso.
Até que em um momento percebeu que eu a observava, deu algumas voltas na sala, dirigiu alguns sorrisos a minha pessoa e eu retribuí todos, acomodou-se ao meu lado, no sofá em que eu estive sentada desde o começo da festa. Quando se sentou, parecia que aquele grande sofá tinha diminuído tão pequena era a distância que tomou de mim. Apertou minhas bochechas dizendo, menina linda, esse laço de fita foi a vovó quem te deu? Respondia afirmativa com a cabeça, parecia que minha voz não queria sair, mas eu sorria, ela era tão cheirosa, seu perfume, misturado ao odor do tabaco não me incomodava, de certo modo parecia-me familiar, embora nunca tivesse visto aquela figura antes.
Tocou minha mão com suavidade e chamou-me para passear no jardim, minha avó tinha uma videira, que naquela época do ano se enchia de cachos viscosos, se esticou e pegou um para mim, eu disse a vovó vai ralhar, não gosta que mexam nas frutas dela e prontamente me respondeu, “um cacho só, saboreie menina, sinta como estão doces, nada daria mais prazer à vovó do que te ver comendo as suas uvas!”
Olhava aquela mulher desconhecida e tão familiar, parecia-me linda.
Seus cabelos caiam sempre do mesmo lado do rosto e ela os prendia atrás da orelha, instintivamente, seu olhar profundo parecia roubar minha alma. Dizia que a fruta que mais sentia falta era o cacau, e sabia que já tinha passado o tempo deles maduros, disse, eles nascem sempre tenros, debaixo daquela caixa d’água lá no quintal do fundo. E deveria conhecer bem a casa, pois muito poucos sabiam do cacaueiro da vovó.
Depois de caminharmos ali ela disse agora tem que entrar, irão sentir sua falta, eu já vou, deixe só terminar o cigarro, olhei para trás mais uma vez e a vi conversando com a fumaça do cigarro e ainda soltou-me um sorriso quase confidente.
Não a vi no brinde do “Feliz Ano Novo”, nem nos cumprimentos, ela e a fumaça de seu cigarro desapareceram por algum tempo.
Mas parecia estar presente em todos os momentos importantes da minha vida, foi ao meu casamento, me visitou na maternidade, quando tive minha única filha, em todas as dificuldades me ajudando e dando-me bons conselhos, sempre um ombro amigo.
Hoje, já com o corpo cansado, minhas pernas já não têm aquela agilidade de menina, ela veio me amparar, olhou-me profundamente, como da primeira vez e me disse que ia me conduzir, deixei-me levar, mas não tinha mudado, nenhuma ruga em seu rosto, nenhum cansaço nos olhos, entendi que a minha hora havia chegado. E finalmente vi que aquela figura havia me acompanhado era a minha face mulher, meu rosto de balzaquiana, os mesmos cabelos, a mesma expressão, o mesmo carinho. Deixei-me levar.

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