terça-feira, 9 de setembro de 2008

A Lenda de Pacarema e Sua Tribo Solitária

Habitando as franjas da baía, porta de entrada dos conquistadores, vivia o jovem Pacarema e seu povo. Selvagens na visão daqueles que vieram além mar dentro das monstruosas canoas gigantes, a tribo era composta de gente indefesa que logo se deixou dominar. E Pacarema não gostava daqueles homens brancos de vestes esquisitas, língua estranha e mando em cada gesto. Sua gente era livre, só devendo obediência aos deuses que tudo provinham a tribo: chuva e sol para o plantio, a floresta de onde tirar a caça, a baía para pescar. E Pacarema viu que desde a chegada dos brancos, tudo era diferente. Seus amigos se corrompiam com os novos hábitos trazidos pelos invasores, homens viciavam-se em suas bebidas, trabalhavam como escravos, as jovens eram violentadas. A harmonia do povo se consumia feito palha seca ao ataque do fogo.
Cansado do reinado de tirania que aportara na baía junto com a gente branca e suas armas que cuspiam fogo, Pacarema foi discutir a questão com o chefe da tribo. Karuaki, segundo a tradição, líder político e espiritual do seu povo, idade perdida nos tempos e fama de imortal estampada no corpo assustadoramente envelhecido, de pronto o recebeu em sua taba. De início, o jovem estranhou a facilidade em conseguir audiência com o líder. Mais espantado ficou ao ouvir as palavras pausadamente escapulidas da boca do ancião.
— Menino Pacarema, há tempos esperava sua visita. Nosso povo vive a opressão vinda de fora, de terras que nem imaginávamos conhecer. Mas tudo tem um porquê, nenhuma folha cai de uma árvore sem que os deuses permitam.
— E porque temos que suportar essa gente estranha?
Karuaki pitou seu cachimbo. Forte cheiro de tabaco emprenhou a taba.
— Para testar coragem do nosso futuro líder, você, menino Pacarema.
O jovem mal conteve a surpresa.
— Eu? Como eu, um insignificante membro da aldeia?
— Você foi o único a vir aqui questionar o domínio dos brancos. Os deuses já previam isso e me avisaram da sua chegada.
— E de que maneira vou ser testado?
— Vai encontra-se com Maripinã, o maior dos deuses. Ele lhe testará a coragem.
Cada vez mais atordoado, Pacarema ouviu as instruções do ancião. Deveria ele tomar uma canoa e remar até o meio da baía. Lá chegando, mergulharia em suas águas e Maripinã o aguardaria em sua morada aquática.
Como vou respirar dentro d’água, chefe Karuaki, se peixe não sou?
O velho sábio da tribo sorriu sua boca sem dentes.
— Antes você mergulhar nas águas da baía, pronuncie três vezes a palavra “xarcoanilaximazari”. Ela lhe dará os poderes de adentrar em segurança nos domínios de Maripinã.
Pairava sobre Pacarema atmosfera de medo pela aventura que se desenrolava diante de si porém, a possibilidade de conhecer o deus Maripinã e tornar-se líder do seu povo o excitava. Gargalhadas e frases na língua do invasor zumbiam do lado de fora da taba, misturadas com o pulsar da vida de sua aldeia, um burburinho melancólico, triste até. “Talvez o deus maior me ensine como enfrentar o flagelo dos conquistadores”, pensou.
Estava Pacarema absorvido nessas divagações quando Karuaki retomou a palavra:
— Lembre-se de mais um detalhe, menino Pacarema. Na próxima noite que o deus Jaribô se alimentar da lua, será chegado o momento de você ir ter com Maripinã. Aguarde o sinal de Jaribô.
Pacarema nunca havia visto Jaribô morder a lua. Tinha notícias do apetite daquele deus através de relatos do mais velhos, testemunhas pretéritas da sua voracidade. Nutria ele verdadeiro pavor da dentada de Jaribô na grande fruta brilhosa que enfeitava as noites da tribo. E seria logo este o sinal para o encontro com Maripinã.
Karuaki cerrou os olhos. Leve ressoar de sua respiração se fez notar. Pacarema entendeu que o mudismo do chefe era a senha de que a audiência findara. Levantou-se com o cuidado no intento de não atrapalhar o repouso do líder e caminhou em passos de pluma na direção da porta da taba. Na saída, pode ouvir ainda o último conselho do sábio:
— Nunca se esqueça, menino Pacarema. Somos livres para tomarmos nossas decisões, mas tomemos cuidado com o que decidimos, pois nossos atos podem influenciar para o todo sempre os que nos rodeiam. Muita atenção com o que você irá decidir.
As noites seguintes foram para Pacarema de reflexão e vigília à lua. Mal o dia se escondia e o astro se firmava no céu, ele escalava um monte próximo à baía e, enquanto aguardava o sinal na forma da fome de Jaribô, pensava nas últimas palavras de Karuaki. Sentiu que teria uma decisão importante pela frente e que ela passaria pelo enfretamento ou não aos brancos. E caso o seu o sentimento de repulsa àquela gente que as canoas gigantes haviam despejado na aldeia não fosse unanimidade dentro da tribo? Se a maioria estivesse feliz convivendo com os conquistadores? Encarou cheio de dúvidas a lua cheia, deslumbrante em seu desfilar através do tapete negro do céu noturno.
Súbito, notou uma pequena diferença no astro. A esfera já não era tão redonda como minutos atrás. Faltava um pedaço quase imperceptível no seu lado esquerdo. Com o passar do tempo, o naco foi aumentando diante dos olhos do Pacarema. “Jaribô mordendo a lua!” exclamou com excitado. Teve desejo de correr, abrigar-se na segurança de taba de seus pais, mas seu destino estava traçado desde que Karuaki anunciara que Maripinã o testaria, e um futuro chefe teria que demonstrar coragem.
Desceu o monte e correu em direção à praia onde deixara uma canoa de prontidão para quando a dentada de Jaribô anunciasse que Maripinã o aguardava. Era madrugada e poucos nativos circulavam pela orla. Alguns invasores ali se encontravam. Um deles gritou para Pacarema em sua língua cujos rudimentos o jovem entendia devido o convívio forçado: “Está fugindo de medo do eclipse, selvagem ignorante?”. Pacarema não entendeu o significado da última palavra dita por aquele branco, mas as ruidosas gargalhadas em deboche que ele soltava repercutiram em sua alma humilhada e diluíram o que ainda nele havia de receio e indecisão.
No meio da baía, exausto pelo trabalho de remar, o jovem nativo lançou derradeiro olhar em direção à lua, já recuperada da mordida de Jaribô. Era chegado o momento. De pé na canoa, pronunciou por três vezes a mágica palavra revelada por Karuaki. Em seguida, tomado por um destemor nunca sentido, mergulhou nas águas da baía.
Envolvido pelo escuro das águas que a noite maquiara, Pacarema deixou que suas braçadas o conduzissem para o fundo. Surpreso, sentiu que respirava e, pouco a pouco, sua visão tornou-se mais nítida. Cruzou por cardumes e plantas aquáticas, deslumbrado com a beleza marítima que o circundava. De súbito, notou que alguém o chamava. Não era uma voz a lhe espanar os ouvidos. Parecia que a sua mente escutava. Foi quando enorme peixe apareceu diante dos seus olhos como se do nada houvesse brotado. Era Maripinã.
O colóquio transcorreu em forma telepática. Bastava um pensar e outro respondia. Maripinã disse que escolhera o jovem para guiar seu povo em substituição a Karuaki e desejava saber se o novo líder era corajoso. Pacarema respondeu que sua coragem seria demonstrada se Maripinã o autorizasse a expulsar os conquistadores de sua tribo. O peixe pareceu esboçar um sorriso e, em seguida, abriu a boca e vomitou uma flauta composta de material sólido e prateado, o qual o nativo desconhecia. Mandou Pacarema segurar o instrumento. O jovem estudou por instantes o objeto em mãos e perguntou para que serviria. “Para livrar seu povo de todos os seus inimigos, seja de onde ele vierem. Basta tocar a flauta mágica mas, você só a tocará uma única vez. Depois me devolvera instrumento, lançando-o na baía. Caso seu coração tenha dúvidas do que fazer, não toque a flauta. Se tocá-la pela segunda vez, seu povo perecerá. Agora vai, Pacarema, segue seu destino e só venha ter comigo novamente quando Jaribô de novo sentir fome”.
Quando deu por si, Pacarema estava de volta à canoa no meio da baía. Ainda era noite. Sua única prova do encontro com Maripinã era o instrumento metálico.Grande responsabilidade tinha em mãos. Bastava que o soprasse o objeto e todos os problemas de seu povo estariam resolvidos. Custava crer que fosse tão simples. E quanto à coragem que tanto falaram o deus e Karuaki? Não fazia muito sentido tudo aquilo dentro de sua cabeça confusa pelos acontecimentos. Hesitou por alguns segundos e introduziu a flauta entre os lábios, dela tirando meia dúzia de notas. Temeroso, atirou a flauta no instrumento na baía. Estava feito.
A canoa tocou a borda da baía junto com os primeiros raios solares anunciado o novo dia. Mal deixou a embarcação, Pacarema testemunhou a histeria alegre espalhada pela aldeia. Os conquistadores haviam desaparecido por encanto. Nenhum traço do invasor se podia notar, nem mesmo as casas por eles erguidas e suas embarcações intimidadoras. Tudo se desmanchara junto com a noite. Nativos levantavam as mãos para os céus e agradeciam a Jaribô, creditando à fome daquele deus o sumiço dos inimigos. Cantoria dominava a aldeia, era a festa da vitória sem a necessidade da luta. Embriagado pela alegria de sua bem sucedida aventura, Pacarema correu para a taba do chefe Karuaki. Juntos comemorariam a façanha. Encontrou-o morto, entre uma roda de anciãos. Minutos antes, Karuaki havia revelado ao conselho da tribo que, por vontade de Maripinã, Pacarema era o novo chefe.
E Pacarema reinou por muito tempo, sendo justo e sábio, trazendo harmonia e paz para o seu povo. Apenas algo o intrigava: a estranha sensação de isolamento da tribo. Há anos não recebia notícias da nações vizinhas, muitas amistosas, outras nem tanto. Saberiam os outros chefes da aliança passada de Pacarema com Maripinã e por isso o temiam? Curioso, ele enviou uma legião de guerreiros para espionar as terras em torno da tribo. Depois de muitas luas colorindo as noites, eles voltaram com a assombrosa nova: não havia ninguém por perto. Pacarema coçou o queixo já enrugado pelo tempo. Precisava falar com o deus-peixe, saber o que se passava.
A angústia do chefe ainda durou muitos anos até que Jaribô viesse saciar seu apetite devorando quase metade da lua. Nessa noite, Pacarema embarcou sozinho numa canoa e, chegando ao centro da baía, por três vezes falou: “xarcoanilaximazari, xarcoanilaximazari, xarcoanilaximazari!”
Os fatos que se seguiram lembraram a primeira visita ao deus habitante da baía: o mergulho, a facilidade de respirar, a visão se tornando clara, o aparecimento de Maripinã.
“Sabia que voltarias”, disse mentalmente o deus. “Sei também o que o afliges. É hora de saberes a verdade da conseqüência de seus atos”.
Um clarão explodiu feito relâmpago dentro d´água e janela para o mundo surgiu. Nela, Pacarema tomou conhecimento de que seu povo agora era o único existente na Terra. Toda a humanidade sumira do planeta quando ele tocara a flauta. Tomado por desespero, viu Pacarema uma amostra de como o planeta se desenvolveria com a existência das outras civilizações ceifadas pelas notas que ele tirara do instrumento de Maripinã A maioria das coisas vistas fugiam à sua compreensão mas nele residia uma certeza: sua decisão atrasara por milhares de anos a caminhada do homem rumo ao progresso.
Perguntou ao deus-peixe, o que poderia fazer para consertar o erro que cometera. Maripinã arregalou seus olhos de peixe, sorriu maroto de lado e concluiu: “Você não errou, chefe Pacarema, apenas decidiu”.

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