sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Desencontros


Rumos perdidos
Nos destinos desfeitos
Por uma desilusão
Do desamor

Desencontros
De mentiras inacabáveis
Separam vidas
Por um instante
E você tenta novamente
Nas armadilhas de seu poder

Rumos perdidos
Em nossos mundos
Eu encontrarei o meu eu
Esquecido da vida
Para sonhar e amar
Nos destinos guardados
Em dias melhores

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Para não ser



Antes que a bomba estoure
Na minha cara de açougue
(Porque meus irmãos agonizam no frigorífico
a dor de suas carcaças geladas)
Antes que o favo mele
Meu “do-ré-mi”
Esturricado
Antes do pescoço na navalha
E o grito coagulado na garganta
Pecados que velam desejos
Mares nítidos na parede pichada
(E lá estava meu antigo nome, declarando amor eterno)

Antes que visite meu sonho mais uma vez
E roube minha consciência
Condeno-me á um pouco de juízo

Terei a primavera mínima
Nos olhos daquela menina
Da defunta calorosa

Antes de qualquer coisa
Despedaço o consolo
Em nervos rompidos
E cânticos de assassinos

Antes de mulher
Serei malandro
Surrando pequenas
Com flores parcas

Antes de mim
A sina
O desmaio no cartão vermelho
Um beijo no pescoço
Do vampiro que não gotejava sangue
Mas palavras sanguessugas.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Crônicas de Viagem: Itabira



Este mês quero compartilhar com vocês experiências literárias que tive nessa cidade mineira, esperando que outros amantes da literatura façam as malas e possam também deliciar-se nesse cantinho de Minas.Para quem não ligou o nome à pessoa, explico: Itabira é terra natal de Drummond.
Itabira, localizada a uns 150 km de BH, tem sua força econômica baseada na produção de ferro (leia-se Vale do Rio Doce), mas todos que visitam a cidade não ficam indiferentes a presença de Drummond em suas ruas.O poeta nasceu em 1902, em uma casa na área rural, décadas atrás desmontada pela Vale do Rio Doce, que descobriu uma jazida na região. Isso mesmo: a casa foi desmontada, não demolida. Recentemente, foi reconstruída em outro ponto da cidade.A iniciativa mais interessante, porém, foi a criação de um museu aberto sobre o poeta. Quem conhece sua obra sabe que Drummond escreveu muito sobre as pessoas e coisas de Itabira. Hoje em dia, mais de 40 placas de metal estão espalhadas em pontos da cidade que inspiraram o poeta. O famoso poema "José", por exemplo, foi inspirado em um fato protagonizado pelo irmão de Drummond, em um casarão da família. O casarão virou o Hotel Itabira, e na frente dele está o texto do poeta, eternizado em uma placa.A cidade disponibiliza para seus visitantes um mapa com a localização de todas as placas, e um passeio pelas suas centenárias ladeiras, becos e casarões é realmente imperdível.Pra coroar sua estadia em Itabira, vale uma visita ao Memorial Carlos Drummond de Andrade, projetada pelo seu amigo Niemeyer e localizada em um morro com vista panorâmica para a cidade.
Então é isso: boa leitura e boa viagem!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Salve os Nanocontos

Participei do concurso na comunidade “Concurso de Microcontos” nos meses de Maio e Setembro e ganhei com esse dois pequenos contos. Fica a dica pra quem quiser concorrer e ganhar um brinde simbólico.

O Beto Menezes, junto com o pessoal do Bar do Escritor mantém uma pequena comunidade: Nanoconto


Paranóia

Acorda e trata logo de arrumar a cama. O lençol é dobrado oito vezes no sentido da costura. A colcha da cama é esticada ao máximo. É preciso ter cuidado para manter a simetria com a cabeceira e o baú. Vai para o banheiro escovar os dentes. A escova é lavada antes, treze vezes para ser mais exato. Sim, claro, pois vai ver que sem querer ele contrai alguma doença de si mesmo?

Brincar com fogo

Queimou as mãos brincando com fogo, mas provou para a mãe: o colchão não amanheceu mijado.

domingo, 24 de fevereiro de 2008



Sonhado encontro
- Esperado!
Debaixo do chuvisco intenso
Estragado
Pelo desatento.

Ofuscado pela reluzente cor
Que insistia em desencontrar
O embriagado amor.
Estacado naquele lugar.

A taça de vinho partiu
Assim como o coração,
Quando o beijo escapuliu
Pela contra-mão.
Do amor louco desistiu.
Restou apenas a frustração.

LENA CASAS NOVAS

* já publicada na comunidade do BDE

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Os iludidos ou Dias cinzentos e noites vermelhas


A História - ou seja, o que os homens fizeram de suas vidas - deu a alguns o poder de fazer dias e noites tornarem-se cinzentos, devido à carne humana carbonizada, ou vermelhos, tingidos pelo sangue inocente.
Mas parece que não se aprende a lição. Hoje, vemos a enorme maioria conformada com uma realidade que um dia será duramente julgada por essa mesma História; aí eles dirão aos netos: "Mas como eu iria saber? Ninguém percebia àquela época que era tudo tão tenebroso assim. Nos iludiam..."

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Projétil





Olhar perdido,
Cravado na luz
Da tecitura do cristal.
Belíssima escultura,
Lâmina de punhal.
Ponta de projétil
Lançada no tempo.



foto: Laércio L. Brochier.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Convidado: Gustavo do Carmo

O AMANTE TÍMIDO

Desde os tempos da escola primária, Nestor sempre se apaixonava por alguma menina. Nunca era correspondido. Aos dez anos, os seus sonhos eram apenas roubar um beijo inocente da amada da vez. Antes de se declarar, as garotas já paravam de falar com ele. Principalmente quando os amigos e amigas descobriam.

Nestor não era feio. Pelo contrário. Tinha cabelos castanhos claros, repartido ao meio, jogados para trás. Era bochechudo, mas não era gordo. Muito tímido, também. Mas as meninas não viam a sua beleza perfeitamente porque ele ficava escondido atrás de uns óculos fundo de garrafa, de armação quadrada.

Veio a puberdade e, com ela, as acnes, a barbicha e a voz grossa. A beleza de Nestor foi embora, mas a timidez e a miopia, não. Esta cresceu ainda mais, junto com a altura do corpo. As meninas continuavam fugindo e ignorando. Nesta fase adolescente, os sonhos já eram mais eróticos. A inocência do primeiro beijo deu lugar ao desejo de ver outras partes do corpo das moças, além das pernas.

A concorrência também já era maior, pois todas as mais bonitas tinham namorados. Eram homens feitos, alguns fortes, outros narcisistas, metidos e antipáticos. Iam buscar suas namoradas no colégio de segundo grau e, na saída, as exibiam como reluzentes troféus.

Das paixões platônicas de Nestor, uma se achava muito nova para namorar. Outra o achava muito novo e também não queria namorar tão cedo. Três o achavam muito pirralho, não queria namorar cedo e ainda o achavam feio. Duas tinham todas essas opiniões e já tinham namorado. Uma já era casada.

E foi por causa desta que Nestor, pela primeira vez na sua vida, quis morrer. Chorou até vomitar. Fez greve de fome, ameaçou cortar os pulsos, se jogar pela janela, enforcar-se e vários outros ensaios de tentativas de suicídio. Mas acabou se conformando.

Estava no início da faculdade quando “perdeu” esta mulher por quem queria morrer. Amadureceu. Passou a sempre tentar descobrir primeiro se alguma mulher já estava comprometida antes de se interessar por ela. Era para evitar grandes traumas amorosos. Como praticamente todas já tinham dono, ficou anos sem se apaixonar.

Os seus sonhos com as mulheres já iam além de descobrir seios, bundas e virilhas das mulheres. O desejo agora era possuí-las em longas horas de sexo. Ao mesmo tempo, Nestor sonhava em casar e ter filhos com elas. Sonhava com a companhia delas em todas as ocasiões, como festas de aniversário, churrascos, casamentos e até em internações e enterros.

Tinha uns vinte e dois anos e não usava mais óculos de lentes grossas - operou a miopia - quando tentou se apaixonar mais uma vez. O alvo era uma moça muito bonita que atendia a todos os requisitos de beleza dos homens e também de Nestor. Além de tudo, era um amor de pessoa. Simpática e prestativa. Era também uma mulher muito discreta. Se era noiva, casada ou tinha namorado, não demonstrava. Não usava aliança - o mais eficiente repelente contra homens ingênuos apaixonados - em nenhum dedo das mãos. Se descobrisse que ela era enamorada, noiva ou casada, não seria o fim do mundo. Assimilaria o choque, levantava a poeira e partiria para outra.

Mas não era bem assim. Nestor já estava cegamente apaixonado por Natanaelle. Ao descobrir que ela estava começando a namorar um amigo seu da faculdade, levou um balde de gelo. Sim, de gelo. Porque doeu tanto pela temperatura da água congelada quanto pelo impacto da pedra em sua cabeça. Não agrediu ninguém. Nem com socos e pontapés. Nem com xingamentos humilhantes. Apenas cortou relações com os dois. Sem comunicá-los. O novo casal nem se preocupou com o rompimento e sequer tentou uma reconciliação com o fiel amigo Nestor, que jurou sobre a bíblia nunca mais se apaixonar por ninguém na sua vida. Cansou de ser rejeitado e de querer ser exclusivo. Decidiu que ia virar amante, se pudesse. Se antes ele não queria dividir seus amores com outros homens, agora estes são quem terão que dividir suas esposas com ele.

Esposas porque as meninas que interessavam a Nestor já eram mulheres e a maioria casada. As moças agora eram troféus de seus maridos, que já não eram majoritariamente garotões musculosos, vaidosos, narcisistas e antipáticos. Na fase adulta de Nestor, seus concorrentes eram empresários quarentões, ricos e, alguns, gordos e carecas.

Nestor sempre gostou de mulheres mais velhas ou equivalentes à sua idade. Com o tempo, passou a se interessar por moças mais jovens do que ele, algumas até com uma década de diferença. Mas foi mesmo uma quarentona que ele conquistou. Conheceram-se no banco onde trabalhavam. Ele como caixa. Ela, gerente.

Sophia era uma mulher madura, alta, de cabelos lisos e negros, pele clara e enxuta, seios siliconados e barriga lipoaspirada. Mãe de três crianças, sendo duas meninas e um garotinho de dois anos caçula e temporão. Encantou-se rapidamente pela simpatia e o sorriso tímido de Nestor.

Estava cansada do casamento, mas não podia largar o marido e os filhos, aos quais amava demais. No entanto, resolveu tirar uma folga dos rebentos por um dia. Numa sexta-feira, deixou as três crianças na casa da irmã solteira e decidiu convidar Nestor para sair depois do expediente. Estava preparada para os rodeios do rapaz aparentemente virgem e suas desculpas para evitar o assédio da mulher casada.

Convicto de sua nova ideologia sentimental, Nestor surpreendeu Sophia com um sonoro “Já é!”. O fato de ela ser bem casada já não lhe importava mais. Queria arriscar e sequer pensou se o marido era um ciumento doentio ou um corno convencido.

Para não dar bandeira a possíveis colegas fofoqueiros que poderiam dar com a língua nos dentes ao seu marido, Sophia disfarçou e saiu antes do banco. Nestor teve que ir de ônibus encontrá-la em um barzinho no Leblon. Beberam juntos à tardinha e a noite inteira. Primeiro conversaram sobre o trabalho no banco, no Méier. Depois sobre a vida de cada um. Sophia falou do seu casamento e dos filhos. Nestor, de suas frustrações românticas. Terminaram a noite arrulhando como pombinhos.

Sophia levou o colega para a sua casa na Lagoa. Já sabendo que Nestor era virgem, não foi com muita sede ao pote. Mais uma vez, Nestor a impressionou com tanta maturidade sexual que Sophia até desconfiou da virgindade do rapaz.

Não se importou com uma possível mentira de Nestor. Estava tão feliz com o prazer extraordinário que nunca havia tido com o marido, com o domínio de seu corpo pelo rapaz, que não quis estragar o clima com discussões sobre a experiência do novo amante.

Encontraram-se mais vezes. Duas, três, cinco, dez. Todas com o mesmo apetite sexual. Nestor tornou-se o amante oficial de Sophia. O garanhão. O garoto de programa pessoal e gratuito. Era isso que ele desejava depois de tantas decepções amorosas e ingênuas.

Um dia, o marido descobriu a relação extra-conjugal de Sophia. O tímido Nestor realizou os sonhos eróticos da pós-adolescência. Só não conseguiu realizar o sonho de casar e ter filhos com uma mulher que o acompanhasse em todas as ocasiões, como festas de aniversário, churrascos, casamentos e até em internações e enterros.

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Gustavo do Carmo escreve no Tudo Cultural.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Eles, quem são?

Silenciosos parecem pássaros recolhidos em seus ninhos a arquitetar uma próxima sinfonia.
Não batem asas ou a menor penugem escapa de suas carcaças minúsculas.
São feitos de um material desconhecido à genética e a outras ciências que ouse desvendá-los.
Muitas cores, das claras às escuras, singram os dias dos atentos e colorem quando previsível o olhar de muitos desavisados com a concretização.
São marítimos, terrenos, espaciais e assim são glaciais, extraterrestres de um todo.
O nascimento de tais seres é mistério que cada um sabe, e o outro imagina, porque quem diz não diz tudo, espera ser descoberto. E, quando descobertos, eles voltam ao estado de hibernação, para formular novas mensagens aos espíritos criadores.
Quando felizes embalam ordens de Paz. Quando tristes pensam o infinito para sempre unificado e uma forma de trazê-lo à tona para os humanos. Talvez a Poesia cubra seus bicos de confiança.
Observam tudo dos seus asilos. O homem e suas vinganças. O homem e suas criações. O homem e sua ganância a mercê dos maiores crimes para alcançar o topo e derrubar, destruir, aniquilar.
Em momentos assim eles choram e ficam como que cegos de ódio, suas lágrimas massacram, porém possuem o próprio coração de Deus e perdoam.
Nos seus interiores uma alma de milênios habita-os. Surgem da geração do princípio. Suas bibliotecas são grandes e de cada um dos seus escritores preferidos trazem a crença de um mundo melhor. Crêem no poder da transformação, acreditam em renascimento e seguem a cruzar linhas e linhas impostas pelos homens para comprovar que o limite é só um desafio quando há disposição para o vôo.
Não. Nunca foram mitos. São realidades em muitas mentes. Há quem os trate como pingos de luz, matizes, impulsos, preliminares, profecias. Há quem os alimente todos os dias e rezam para que eles nunca partam. São símbolos de que a esperança deve perseverar.
Múltiplos são de todos os lugares e conhecem todos os mares, todos os vales, áridos, povoados, desabitados, mortíferos e redentores. Viajam constantemente, mesmo quando estão em reflexão. Seus enormes olhos correm tempos...
Quando um deles morre – se é que eles morrem – outros milhares nascem.
O homem busca interpretá-los, mas será mesmo que há uma possibilidade exata de interpretação já que são muitos?
A fala sim os liberta, os atos os colocam em prática.
Quando isso acontece, eles deixam de ser solitários, para comungar a imortalidade da alma do homem e aperfeiçoar os seus bons momentos.
O caso destes pássaros íntimos é um mistério e também várias revelações.
Eles são os sonhos. E todo aquele que trabalha em prol de alimentá-los e mantê-los vivos não é somente um mártir e sim um deus que descobriu que do seu equilíbrio depende o equilíbrio do próximo no direito de ir e vir.
Quer aprender a voar, ser iluminado? Deixe que o sonhar liberte-o e ensine o maior dos segredos do amor: a doçura de realizar-se sonhando para depois, só depois, acrescentar concretizando.


Eliane Alcântara.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Enquanto o Silêncio Não Fala

Meus monstros
Estão em festa
Nos calabouços
Da memória.

Quebram taças,
Derramam vinho
Nas paredes
E janelas.

Caem bêbados.

Levantam-se
E tornam a cair.

(re)contam minhas histórias,
deslendam minhas lendas,
Divertem-se com a escória,
Rindo
Entre si.

E como não tem
Nada para escutar
Do lado de fora,
Eu sou um espectador atento
Das estórias que contam
Em mim.

André Espínola

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

VIDICOM

Das terras longíquas do Norte, o velho bruxo trouxe o espelho mágico.

-Finalmente. - exultou a rainha má. O espelho é meu!

O bruxo tomou suas moedas e afastou-se, deixando o estranho dispositivo acoplado ao nicho do aposento da rainha.

Um gênio habitava o espelho. E a megera passou a comunicar-se com o Espírito:

-Espelho meu, há alguém mais bela do que eu?...

O tempo passou.

Nas ruínas do velho castelo de Husberth, em terras dos saxões, o diligente historiador encontrou um estranho objeto: uma chapa de cristal quadrada, três palmos de lado, agarrada a um tubo catódico, uma válvula, um condensador com seus dois pólos e, estarrecido, detectou uma objetiva rudimentar firmemente acoplada à frente, direcionada à tela, como a capturar a própria imagem do equipamento.

Os bruxos do Norte conheciam os receptores de ondas eletromagnéticas.

Recriaram em laboratório eletrônico o rudimentar Vidicom. Era a chave dos segredos da TCI, e precedia as redescobertas de Marconi, Landell de Moura ou mesmo Baird.

Desde as mesas girantes, da tiptologia, da psicografia, o intercâmbio com o plano espiritual evoluía, e a mediunidade, a transmissão dos fluidos pela hipófise, o Spiricon, tudo tornava-se obsoleto - os portais interdimensionais estavam cada vez mais exequíveis.

Alimentaram com eletricidade o Vidicom retirado das ruínas. Um gênio surgiu na tela, comunicando-se num típico dialeto saxão. Reclamava sua rainha, operando numa faixa de onda do Umbral Grosso. Questionou sobre uma tal maçã mergulhada numa droga de indução ao coma cataléptico.

As obsessões eram um escolho, não somente entre médiuns. O gênio jamais se desprendeu daquele harmônico, frustrando toda tentativa de sondar a paisagem do Além, no plano Espiritual ou Monádico, através do espelho mágico outrora oráculo da vaidosa rainha.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Resposta

Em bom português
perguntaram-me
- quem és tu?

Respondi: sou
nem preto, nem branco
Não sou nação bicolor

Sou muitos tons
Brasileiro
Eu sou o riso e a dor

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Sobra de Versos

a teoria do caos
da sala de estar

que antes era obra
da dona do lar

agora
são sobras dos versos
que deságuam nas ruas

que a atrofia do tempo
corrói dos amantes...

ora,
o Fiat Lux no vácuo
onde, alucinada, a incendiária
pôs ordem no alojamento

daí que a gênese
da poesia transmutada

despertou do hiberno
das trevas
e olhou-se no espelho

rugas e rusgas...

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Convidado: Chacal

feliz 2008



narrar um assassinato é quase tão

difícil como dizer que te amo

como falar do sangue que se esvai ou

vc cantarolando numa aléia do horto de vestido florido

como descrever o terror dos olhos e o grito sequelado ou

vc vendo tv de calcinha de algodão

ou como dizer da arma ainda quente ou

seu corpo mole na cama

essas coisas do amor e do ódio

são impossíveis de narrar.







http://chacalog.zip.net/





Reconhecido no universo cultural brasileiro, o poeta Chacal usa a palavra como instrumento verbal para denunciar o cotidiano da barbárie, sempre recorrendo ao humor e à metalinguagem. Em seu processo criativo é raro o poeta trabalhar a palavra, por entender que o poema tem uma estrutura inconsciente. O processo é espontâneo, dentro de uma linha surrealista, desenvolve-se no inconsciente e aflora em sua "anatomia". Cronista, letrista, autor de teatro e, sobretudo, poeta, Chacal caminha pela poesia antropofágica herdade do mestre Oswald de Andrade. "Acho que o poema não tem que ter modelos preestabelecidos. Têm pessoas que só trabalham daquele jeito e são ótimos, têm que ter forma, métrica, aquela grade para se soltar na formalização. Eu acho que o poema sabe de si. Vem de uma forma ou de outra, mas vem".
(Gil Francisco)

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Três Vértices de Um Triângulo Rodriguiano


Amava as duas sem distinção. Afinal, eram suas mulheres, mães de seus três filhos. Rosalina lhe dera dois meninos, Marcela completara o trio. Eventualmente Afonsinho se penitenciava por não ter feito mais um rebento em Marcela, achando que privilegiara Rosalina no número de crianças, tanto que deu cambalhotas de alegria quando viu a barriga de Marcela crescer, anunciando mais um herdeiro. Dois a dois, peleja empatada. A criança no bucho restabelecera a justiça.
Pairava sobre ele o horror ante a possibilidade de estar beneficiando uma em detrimento da outra e por isto procurava dar tratamento igualitário a suas duas mulheres. O mesmo padrão de vida, carinhos equilibrados, presentes exatamente iguais. Ao atinar que o lugar onde ele morava com Rosalina três dias por semana ficava aquém em estrutura ao que vivia outros três com Marcela, mudou-a para o mesmo bairro, mesma rua, casas semelhantes em números de quartos e área construída. Afonsinho era um socialista e não sabia. Transbordando escrúpulos pelos poros, uma vez por semana, com o intuito de equilibrar possíveis diferenças em suas relações familiares, ele dormia em um hotel mixuruca no Centro da Cidade, sozinho, pois não cogitava de modo algum ter uma amante. No sétimo dia, biblicamente descansava.

A ousadia em alojar suas duas esposas na mesma rua só foi possível por se tratar de uma avenida longa, que atravessava todo o bairro. Marcela ficou numa extremidade da rua, Rosalina na outra ponta. Possuía a crença de que esta estratégia impossibilitaria o encontro casual das duas. Para enganá-las, simulava trabalhar como vendedor pelo interior do estado e assim, quando iludia uma das mulheres fingindo viajar a negócios, significava que estava com a outra esposa e, de acordo com este esquema, uma delas era sempre enganada. Em verdade, Afonsinho tinha um pequeno escritório de cobranças, fato que as duas desconheciam por completo. Ele vivia uma farsa de anos para não magoar seus dois amores e se ver desobrigado a optar por um dos seus lares, destruindo o preterido. Nem ele queria isto. Desejava sim, viver como estava vivendo, dividindo entre suas duas famílias.

Doutor Dinorah era um ginecologista muito conceituado por aquelas bandas. Livre da ganância e competente, logo estabeleceu uma boa clientela. Um leve corrimento levou Rosalina a sala de espera do médico, justo ela que abominava exames ginecológicos. Acreditava estar sendo invadida no limiar da sua intimidade por um desconhecido olhando e, o cúmulo: tocando em suas partes. Aliviou-se que o Doutor Dinorah fosse um ancião. Rosalina guardava fé de que os velhos fossem isentos de possuir alguma tara.

Desconfortável, numa sala de espera apinhada de mulheres, talvez com pudores semelhantes aos seus, Rosalina puxou conversa com uma daquelas grávidas que lotavam o ambiente. Marcela inicialmente respondia de maneira monossilábica e distante as dúvidas de Rosalina acerca das qualidades e distanciamento profissional do Doutor Dinorah, preferia concentrar-se em uma típica velha revista de sala de esperas. Mas a simpatia irradiada por Rosalina era tão envolvente que as duas saíram do consultório direto para uma lanchonete como se fossem amigas do tempo de colégio.

Marcela, a menos ingênua das duas, foi quem montou o quebra-cabeça da traição entre os salgadinhos, doces e refrigerantes espalhados pela mesa por elas ocupada. O diálogo revelara que ambas possuíam um marido chamado Afonso, vendedor e que passava alguns dias da semana viajando. A prova incisiva estava em uma foto que Rosalina trazia consigo. Marcela viu a crápula figura do marido, sorriso de político em campanha de eleitoral costurado nas fuças, entre duas crianças rechonchudas, tendo Rosalina como adorno da foto a completar o quadro da família feliz. Os que estavam dentro da lanchonete imaginaram se tratar de duas fugitivas de um hospício em razão dos berros e ataques histéricos em dueto. A dor conjunta, ao contrário de acirrar rivalidades, transformou a dupla de mulheres em cúmplices de uma vingança.

Afonsinho voltou contente do trabalho naquele tarde. Dirigia-se para o seu lar dividido com Rosalina após a estada em companhia de Marcela. Os dias haviam sido agradáveis junto ao filho e a mulher grávida, mas batia uma saudade dos afagos de Rosalina e da presença de seus outros moleques. Enfiou a chave na fechadura de casa pensando no quanto ele fora agraciado por ter duas mulheres tão encantadoras que haviam gerado filhos maravilhosos. Estranhou o silêncio da casa. Vasculhou os cômodos desertos enquanto chamava pela mulher. Chegou a imaginar que uma das crianças estivesse em alguma emergência de hospital. Assustado, procurou um telefone para tentar localizá-la. Enquanto discava, percebeu uma série de fotografias espalhadas pela mesa onde estava o aparelho. Sua respiração travou, coração pulsou mais forte e de início seu cérebro pareceu não assimilar o que seus olhos captavam: uma seqüência de fotos mostrava Rosalina nua, acompanhada de um homem de corpo bem definido, dragão tatuado no bíceps. As expressões da mulher nas fotos denunciavam que ela estava se divertindo bastante em companhia daquele sujeito. Desesperadamente surpreendido, Afonsinho procurou nas fotos explicação para o que se sucedera. Em uma delas, presa por um clipe, a lacônica mensagem em um pedaço de papel: “Adeus”.

Procurou pela mulher e filhos na casa de diversos parentes. Ninguém conhecia o paradeiro de Rosalina. Alguns até se espantaram com a notícia de sua fuga, por julgar o casamento deles um exemplo de harmonia. No segundo dia, Afonsinho transtornado, se embebedou, no terceiro, espantou-se com o seu próprio conformismo e decidiu voltar para a família que lhe restara.

Sentiu um calafrio invadir sua alma ao dar com a casa vazia. Mecanicamente, procurou por um embrulho de fotos. Lá estava ele, próximo ao aparelho de telefone. Diante da coincidência de fatos, compreendeu o que se passava. Ainda relutou em espiar as fotografias, mas, não conseguindo evitar, viu impresso em papel fotográfico a imensa barriga de Marcela acariciada pelo mesmo homem nu, cujo dragão tatuado aparecia de forma mais nítida, destacando uma obscena língua vermelha bifurcada. Tal ocorrido lhe pareceu uma vingança mais dolorida que a primeira, porque Afonsinho nutria fé na santidade de uma grávida. Não cogitava da possibilidade de prenhas terem desejos sexuais. Ele mesmo evitara Marcela durante o crescimento de sua barriga. Em prantos, leu o bilhete escrito em letras caprichadas da sua segunda mulher, preso a um clipe de forma idêntica ao encontrado na casa do outro extremo da rua. Mais prolixo do que o deixado por Rosalina, o recado compunha-se de apenas uma reveladora e sarcástica rima: “Quem com duas mulheres decidiu viver, duplamente corno há de ser”.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

UMA ESTÓRIA DE CARNAVAL

É, eu sei. Ele foi pescar com os amigos, no Carnaval do ano passado.

Ela tinha sonhado com uma mini-lua-de-mel à beira-mar, em alguma pousada do lado inacessível da Ilha, aonde só se pode chegar de jipe ou de barco. Iriam no jipe dele, rindo das dificuldades da trilha entre cachoeiras e coqueiros, lambuzados de repelente para não serem devorados pelos borrachudos, rolariam na areia à noite e assariam peixe na brasa tomando água de coco.

Seria o primeiro Carnaval que os dois passariam juntos, depois de quase um ano de namoro. Mas ele foi pescar com os amigos. Disse que todo ano fazia isso e não ia mudar.

Por isso é que ela, no ano passado, aceitou o convite da amiga que não viajara porque tinha rolado um frila para entregar na quinta, mas estava solteira e muito a fim de aproveitar as noites de farra para conquistar um amor definitivo.

Ela aceitou o convite achando que ia ser uma tremenda roubada, imaginou as duas dançando sozinhas a noite inteira com uma cerveja na mão – sempre achou um horror isso de mulher dançando sozinha, em toda festa tem um monte de mulher dançando sozinha. Vestiu o conjunto bege que o namorado dizia que parecia fantasia de Carnaval, imagina, tão discreto, bege... mas tinha um decote fundo contornado por duas linhas em dourado. Pôs na testa o colar egípcio de moedinhas, achou-se linda no espelho.

A amiga tinha decidido que chegariam cedo, detesta homem suado e entrar em baile de Carnaval, só no começo, quando eles estão ainda bem sequinhos.

Quis o destino que, assim que adentraram o salão de baile do clube de futebol, fossem cercadas por quatro rapazes animados e bonitos que as puxaram para dançar. Um de colar de havaiana, um que dançava equilibrando na testa a latinha de cerveja, um de boné que se chamava Fred e ficou com a amiga dela, e Marcelo, o dos olhos verdes, que se apossou dela como co-folião.

Mais tarde as namoradas dos outros dois rapazes chegaram e os oito se mantiveram juntos a festa toda, e pela madrugada ela e a amiga já estava íntimas das outras duas garotas.

Na noite seguinte todos assistiram ao desfile das escolas de samba no camarote de uma
empresa de telefonia, com credenciais conseguidas pela amiga jornalista; no domingo voltaram ao clube; na segunda-feira foram a um baile de cabeças fantasiadas na casa de uma socialite amiga do Fred.

A essa altura ela e Marcelo já tinham passado por todos os estágios emocionais de um amor: o flerte e a conquista no primeiro dia, troca de olhares, abraços, um beijo quase roubado, quase dado, o encantamento um com o outro durante as dez horas que passaram juntos, provocação e atiçamento, negaceio e posse. No sábado tinham formado um par, inegavelmente um par, ele já sabia que ela tinha namorado e disse que não se importava, vamos ficar juntos nestes cinco dias, e sejoquedeuzquizer.

No domingo tinham se transformado num casal, ele ciumento perguntava pra onde ela estava olhando, puxava-a possessivo quase com fúria, cantava num arremedo de alegria desafiando os outros machos com a mão esquerda socando o ar enquanto insinuava a mão direita por baixo da blusa dela e ela se desvencilhava zangada, escuta, sem essa, tá? Eu tenho namorado! Se você não consegue ficar comigo sem ser inconveniente, não quero.

Então aquela festa da segunda-feira na casa da grã-fina não podia mesmo rolar muito legal, estava um clima meio assim, entende? Marcelo sorumbático pelos cantos da casa enquanto os outros sete tentavam dançar como se nada houvesse. Uma hora os três amigos dele a arrastaram pelo chão, dois puxando pelos tornozelos e outro por uma das mãos – a calça branca ficou escura no bumbum – e a levaram até Marcelo:

– Conversem! Resolvam essa história!

Os dois ficaram se olhando, os amigos foram embora e ela ainda sentada no chão disse, olhando para o alto:

– Olha, Marcelo, não faz gênero, tá? Eu não resisto a homem triste e sei que você não é assim. Está só fazendo tipo.

E esta era a situação na terça-feira do Carnaval do ano passado, quando estavam de novo no SPFC, tentando recuperar o clima feliz do primeiro dia e no último intervalo da banda ela foi ao banheiro. No caminho, sentiu o puxão no braço:

– Ana Rute?! O que você está fazendo aqui??

Ela se voltou e viu o namorado, bronzeado, ombros descascando de excesso de sol. Uma incredulidade insuportavelmente alegre fez com que ela perguntasse o óbvio:

– Lucas, você tá aqui?

E depois:

– Quando voltou?

– De longe te vi, pensei “reconheço esse cabelo em qualquer lugar do mundo”.

Aí ele repetiu:

– O que você está fazendo aqui? Voltei hoje, te liguei, deixei recado no seu celular.

– Deixa eu retocar a maquiagem, quando eu voltar a gente conversa.

Ela entrou no banheiro e viu uma ex-colega de colégio, que gritou:

– Ana Rute Lemos, você está linda!

Olhou-se no espelho e achou que estava mesmo, o rosto afogueado pela dança ou pelo encontro, um pouco descabelada, os olhos brilhando, a cintura acentuada pelo tecido da canga verde, curtinha, presa com um broche para o lado, as pernas morenas brilhando sobre as sandálias.

Quando saiu do banheiro, o namorado tinha sumido. Ficou esperando que ele voltasse, não o viu mais. Marcelo veio buscá-la para dançar, ela recusou:

– Meu namorado voltou.

Mas não o viu na multidão que passava, casais e mais casais abraçados no é hoje-só-só-só-vai-acabar-já-já. A amiga jornalista reportou que ele estava dançando agarrado a uma nariguda de cabelos cacheados e mini-blusa azul, com uma barriga sensacional, e que ela desencanasse e fosse com o Marcelo. Mas ela ficou ali, teimosa, na esperança de ver Lucas de novo. Não viu nenhum dos dois, nem ele nem a nariguda.

À saída do baile ainda achava que Lucas ia aparecer para levá-la para casa e foi a custo que a amiga convenceu-a a ir embora.

No celular, de fato, havia um torpedo: “Oi amor voltei me liga.”

Passaram o ano inteiro brigando, porque ela não perdoa ter sido abandonada no clube, esperando que ele a puxasse para dançar e depois esperando ser levada para casa, e ele admite que foi com a nariguda para um motel, “era Carnaval, pô!”, mas garante que nunca mais viu a criatura, “que aliás não chega aos seus pés!”. E outra coisa: se ela tivesse atendido ao telefone quando ele ligou, ele nem teria conhecido aquela menina. A culpa, portanto, foi dela. Ou pelo menos é o que ele acha.

Por outro lado, Marcelo não desapareceu do cenário, telefona, manda flores, mas ela diz a Lucas que “foi fiel o tempo todo”, enquanto ele alega que a outra “foi só" uma transa de Carnaval, além de discordar de que ela tenha sido fiel.

Pior: aquela grande amiga está até hoje com o Fred e vão se casar no fim do ano, e o Marcelo vai ser padrinho, o que complica ainda mais as coisas, porque adivinha quem vai ser madrinha?

Neste Carnaval ela e Lucas foram para a Ilha, para a praia dos sonhos dela, ele pela primeira vez em quinze anos deixando de ir pescar com o grupo dos amigos de infância.

Desconfio que passaram os quatro dias discutindo o Carnaval passado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A Odisséia


Incursionou pelo Budismo, Confucionismo, Xintoísmo, Hinduísmo, Zoroastrismo, Rosacrucianismo. Participou de cultos, missas, liturgias, cerimônias, rituais diversos. Leu centenas de livros, dentre os quais "O Livro dos Vedas", "O Alcorão", "A Bíblia Sagrada", "Assim Falava Zaratustra", "Necronomicon", "A Erva do Diabo" e "Orixás, Caboclos e Guias, Deuses ou Demônios?", do Bispo Macedo. Mortificou-se, autoflagelou-se, fustigou seu corpo com a Santa Vergasta da Penitência. Praticou ioga e meditação transcedental. Provou cogumelos, ervas, poções, beberagens, Cannabis sativa, flores, água benta, Santo Daime, LSD, cérebro de macaco prego, menstruação de égua recolhida em Sexta-feira Santa. Fez despacho na encruzilhada, subiu ao cume da montanha mais alta, invocou os demônios no centro da Estrela Mágica.
Chegou ao Nirvana em uma fria e estrelada noite de dezembro do ano de 1991. Ensandecido, olhar vazio, com a camisa xadrez empapada de suor, batia cabeça ao som de "Smells Like Teen Spirit", enquanto as chamas da enorme fogueira, armada no quintal, devoravam seus livros. Estava bêbado e feliz. Sua busca havia chegado ao fim.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Homo brasiliensis


– Cobogó? Que diabos é isso?
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu estava voltando para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia Brasília e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
– Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
– Como é? – Indagou a mulher formando rima.
– As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
– As margens do lago são muito íngremes?
– Não. Por que?
– Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
– Eixão?
O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade.
– ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
– E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
– Os prédios, conhecidos por blocos ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
– Cobogó? Que diabos é isso?
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
– ... além do que, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
– Não há nenhum prato típico por que os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
– Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
– Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em Brasília as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
– Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
– Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
– Não entendi...
– Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
– E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
– Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
– Era tão ruim assim?
– É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
– Como assim? Não entendi...
– É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
– Interessante essa lenda...
– Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.


* Foto de Carlos Vieira

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Quando os caminhos se reencontram

Podia estar fazendo sol. Este céu fechado e suas horas lúgubres, que deixam as coisas com esse ar soturno e sem vida aparente. Arroxeadas, por vezes. E o roxo é uma cor engraçada: na sua roupa, te deixa fashion; na sua cara é porque entrou em alguma roubada. Quando as coisas estão perdidas no caos, caqueticamente corroemos nossos cérebros...
Meio que desperto de uma multidão de pensamentos descontrolados e sem razão aparente. Sinto que eles estão agora mais rápidos e desconexos do que em qualquer outra ocasião. Procuro me acalmar; tenho que respirar fundo e me acalmar. Essa é a senha para o autocontrole e isso já me ajudou em diversas ocasiões. Concentração e foco, eis as palavras. Olho ao redor e tento me familiarizar com o que me cerca.
Estou parado defronte uma casa que recordo vagamente. Já andei muito por aqui, sei disso. Há muitos carros na porta e acho que reconheço alguns deles. Só não sei dizer de quem são. As coisas ainda estão muito nubladas. Puxo pelos cacos da memória e imagens distorcidas e sem conexão cruzam minha mente sedenta por respostas.
- Deixe-se guiar pelo que mais te toca - Um homenzinho vestido de branco, uma espécie de pigmeu vestido à moda inglesa do século XVIII, grita para mim, do outro lado da rua – Os caminhos estão aí, você vai encontrá-los!
- Maluco... – Acho que é meu primeiro pensamento sensato, hoje. Ele tenta se aproximar, mas me afasto rapidamente. Tenho que fazer um tremendo esforço de concentração somente para atravessar o asfalto. O engraçado é que agora sei aonde devo ir, mas não me recordo do porquê tenho me dirigir para lá.
Avanço pelas calçadas apinhadas, por entre as pessoas que seguem seus desígnios diários, suas rotas, rotinas e vidas. “I cross the streets without fear / everybody keeps the way clear”[1] . Não sei por que essa frase apareceu na cabeça. Veio de alguma lembrança que não me recordo. Aperto o passo para deixar as pessoas para trás e cruzo por fachadas e lugares, parques e bares, tudo vai ficando no caminho; eu caminho agora dominado as calçadas, todos desapareceram, quase como atendendo uma vontade íntima que não sabia explicar. “I walk this empty street / on the Boulevard of Broken Dreams”[2]. Sinto que estou chegando perto, mas do quê?
Um pequeno café, com ares parisienses me dá a resposta. Conheço esta entrada, já a atravessei diversas vezes. O ambiente é hospitaleiro e convida a se sentar e tomar algo. Olho para o bar vazio, os copos enfileirados, um jornal que pende no canto do balcão, ao lado de um cigarro que se consome sozinho no cinzeiro, duas pastas executivas, novas em folha lhe são vizinhas de um lado; do outro está uma bolsa caracterizada com duas enormes letras entrelaçadas, a assinatura dos estilistas que a fizeram. Um pequeno símbolo de status feminino. A Ferrari parada em frente ao estabelecimento é o masculino. Atravesso o portal e adentro o recinto, olhando em volta, tentando achar uma resposta. E a encontro.
Responde pelo nome de Hannah e está sentada de costas para a porta, sozinha e com os cabelos soltos. Bebe um capuccino frio e fuma um mentolado olhando para a paisagem que se descortina pela vidraça do fundo: um vasto campo de golfe, povoado de carrinhos vazios e tacos jogados no chão. Ela está triste, muito triste, posso sentir de longe e isso me atinge. Sua tristeza é minha tristeza, sua dor é minha dor e entendo agora porque isto acontece: partilhamos nossas vidas e almas há muito tempo.
A simples visão dela me faz relembrar muita coisa; brigamos ontem (ou antes disso) por alguma coisa que não valia realmente a pena. Saí pela cidade meio louco e me embriaguei diversas vezes em diversos lugares, tentando tirá-la dos meus pensamentos, mas quanto mais bebia, mais me lembrava, quanto mais tentava esquecer, mas ela penetrava fundo na minha imaginação e dançava nua na sala do apartamento, me fazendo refém e escravo de suas vontades, mesmo dentro da minha mente. Eu corri o máximo que pude e tudo que consegui deixar para trás foram minhas vontades. Não havia como escapar, estávamos ligados para o todo sempre, apontados para o nunca. Sento-me do lado dela, que impávida, fita o horizonte e me ignora “Eu não tenho nenhum interesse em esconder nada de você / Isso nunca fez parte dos meus planos”[3].
Engraçado pensar nisso agora. Peço desculpas por ter sido um tolo e por todas as vezes que fiz besteira com base em pequenas coisas, esses estorvos loucos que colocamos nos nossos próprios caminhos. Parece desconfortá-la, tudo o que digo. Desfio um rosário de escusas, me penitenciando por cada ato ruim – o rosto dela se contrai - relembro cada fato bom – fazendo com que uma lágrima solitária escorra pelo lado esquerdo de sua face. Tento interromper o trajeto da gota, mas ela balança a cabeça para longe, como se espantasse um pensamento ruim. Fico ali sem ação, sem saber o que fazer.
Como se um véu mágico tivesse sido tirado da frente meus olhos, as pessoas se materializam do nada e vejo que o lugar está cheio; as pessoas vem e vão, conversam sobre suas vidas e frustrações, êxitos e fracassos, tudo com uma ótica própria e defensiva. Percebo que Luísa, nossa melhor amiga, se aproxima. Ela trabalha comigo em uma gravadora e é uma espécie de cupido do nosso relacionamento. Foi quem nos apresentou e é também quem sempre aparece para botar panos quentes todas as vezes que faço bobagem. Armo um sorriso agradecido para ela e as deixo conversarem sozinhas. Isso provavelmente irá me ajudar. Dou uma volta pelo salão, tendo a nítida noção que estou invisível para todos estes que falam somente de si e de seus mundinhos particulares. Não resistindo à curiosidade, retorno para minha cadeira. Hannah está cabisbaixa, fitando uma pequena fotografia, enquanto Luísa a abraça:
- Acho que você deveria dar uma chance para o Jefferson. É um bom rapaz e têm tudo a ver com você. É hora de seguir em frente.– Traidora! Como ela diz uma coisa dessas! -
- Eu... Eu simplesmente não consigo. Ele sempre está comigo, você não vê?
- Um ano é muito tempo, até mesmo para o que vocês sentiam... É hora de você seguir em frente e deixá-lo para trás de uma vez.
- O que mais me dói, é que ele se foi e nem tive chance de me despedir direito... Havíamos brigado por uma besteira minha. Foi tudo minha culpa.
Percebendo o tanto que Hannah havia ficado abalada com estas palavras, automaticamente me levantei para abraçá-la, quando pude ver detalhadamente a foto que ela segurava. Um santinho, destes que se dão em missas de sétimo dia, onde se encontrava minha foto e logo abaixo minha data de nascimento e o dia de hoje, só que um ano atrás. Aquilo fez com que eu perdesse imediatamente o equilíbrio e desabei pesadamente no chão. As imagens brotaram de maneira rápida e grotesca na minha cabeça: dirigindo sob uma chuva torrencial, com uma garrafa nas mãos, gritando e gesticulando para todos os lados, ouvindo aquelas músicas no último volume, a derrapagem, o meio-fio e o choque frontal com um caminhão carregado; os quinze minutos que agonizei no meio das ferragens, sussurrando o nome dela e pedindo a chance de revê-la somente mais uma vez, a dormência que me acometeu de pouco em pouco e por fim a escuridão que tomou conta de tudo. Uma longa e negra noite que caiu sobre meus olhos, até o momento em que me vi em frente a uma casa. A nossa casa. Um ano depois da minha morte, eu estava de volta. Mas para quê? Para sofrer com uma proximidade que não é tátil, ou para assombrar um amor que na se pode concretizar? Para vê-la se decompor em vida, tal qual meu corpo físico vinha fazendo nos últimos 365 dias? Como pode meu amor por ela estar vivo, mesmo eu estando morto? “I believe in never / I believe in all the way”[4]
- Para guiá-la. – A voz veio do lado direito do salão. Me virei e dei de cara, não literalmente, com o mesmo anão que havia me gritado na rua, horas antes.
O pequeno ser apontou o lado de fora do café. Hannah estava em pé, abraçada à Luísa, e ainda chorava. Soltou-se devagar, limpou os olhos com um lenço dado pela amiga e se despediu. Dirigiu-se para o carro, abriu a porta e estacou de repente e se virou. Olhou para minha direção e o brilho nos olhos dela me deu a plena certeza que conseguia enfim me ver. Seu sorriso cobria o rosto, quando seu corpo foi violentamente lançado no espaço, junto com partes do veículo. Um caminhão desgovernado, atravessou a contra-mão, cruzando a pista e se chocando com os carros que estavam estacionados. O horror tomou conta de mim e atravessei café, lançando mesas e pessoas para todos os lados, sem nem me lembrar que não conseguiria fazer o mesmo cinco minutos atrás. Ela estava caída no meio dos destroços, com o corpo dobrado de várias maneiras, apontando múltiplas fraturas e com o rosto parcialmente desfigurado. Seus olhos estavam cravados no céu e a boca semi-aberta parecia pedir um socorro que ninguém neste mundo poderia dar. Ajoelhei-me ao lado dela, aos prantos e implorando por ajuda, por alguém que a levasse a um hospital e tratasse os seus ferimentos “And if you go, I gonna go with you / and if you die, I gonna die with you”[5] . Estava louco de desespero, quando uma pequena mão pousou no meu ombro:
- Não há nada que se possa fazer por este corpo – era o pigmeu albino outra vez.
- E o que você quer eu faça? – gritei – Que a deixe sozinha?
- Você está aqui justamente para ajudá-la neste momento difícil - mostrou algo do outro lado da rua.
Olhei para onde o pequeninho apontava e Hannah estava de pé, com as mãos no rosto, olhando incrédula para o próprio corpo destroçado. Aproximei-me devagar e percebi o quanto estava assustada:
- Não... Não é possível. Você está morto!
- Verdade. Mas agora, você também está.
- Isso não é possível!
- É estranho e confuso, mas a gente se acostuma.
Lentamente a abracei e deixei com que seus temores se dissipassem.
- E agora, o que acontece com a gente?
- Isso eu não sei. Mas o importante não é o que vai acontecer, mas sim que enfrentaremos juntos.
- Você jura? – se agarrava a mim assustada.
- Quero que um raio caia na minha cabeça se estiver mentindo – ainda abraçado, comecei a cantarolar – “We got the empire, now as then / We don't doubt, we don't take reflection / Lucretia, my direction, dance the ghost with me...[6]
Não importa em qual mundo estamos juntos, só que estamos juntos.

[1] - “Eu cruzo as ruas sem medo / todo mundo deixa o caminho livre” Caetano Veloso – London, London.
[2] - “Eu caminho por essa rua vazia / na alameda dos sonhos despedaçados” Green Day – Boulevard of Broken Dreams.
[3] - Gonzallez – Sob o calor do momento.
[4] - “Eu acredito no nunca / Eu acredito no até o fim”Smashing Pumpkins – Thru the eyes of ruby.
[5] - “E se você for, eu quero ir com você / E se você morrer, eu quero morrer com você”System of a Down – Lonely Day
[6] “Nós temos o império, assim como antes / Nós não duvidamos, não paramos para refletir / Lucretia, minha direção,dance a morte comigo”The Systers of Mercy – Lucretia, my Reflection.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Existenciais ismos

E ainda eu ainda alço-

me ao chão sozinho

parapeitando pombinhos

em andanças rituais.


Ainda que ainda eu seja

ainda o “aquele que insiste”

negando a razão que existe

na mente de todos demais.




Paulo Eduardo de Freitas Maciel de Souza y Gonçalves

sábado, 2 de fevereiro de 2008

O vestido

O vestido

Odiava esperar as coisas acontecerem, mas talvez por um momento, pudesse se permitir ser levada pela força do vento, esvaziar seus pensamentos e deixar-se como folha avulsa que se solta em idas e vindas lascivas.
Atordoada, não sabia se pela espera ou se pelo número de pílulas que tomara, Cecília entregava-se ao vento e como seu vestido de seda púrpura, ela ondulava, quase dançava, aquela leveza tomando-lhe a pele clara, sem a devida noção do tempo, não distinguia dia ou noite, se aquilo era real ou se era mais uma de suas visões.
Lembrou-se de César por um momento, parecia que nunca vivera sem ele, a impressão mais forte que tinha era que ele era uma constante em sua vida, mas com a mudança de vento, seus pensamentos mudaram de rumo.
Ateve-se ao vestido, olhava a disposição de suas saias e suas dobras, adorava aquele vestido, tinha vontade de dançar e sorrir. Em movimento de rotação, dançava sozinha e ria de si mesma, quase que embriagada de nada. De tanto rodar, sentiu vertigens e parou num movimento brusco. Ainda observando as dobras do vestido, se a vida tivesse dobras como suas saias, como descobrir onde começa uma coisa e termina a outra? Haveria uma linha intermediária entre o contemplativo e o ativo? Olhar as saias a agradava, mas rodar para fazê-las se movimentar era infinitamente melhor, a deixava tonta, mas realizada, leve como uma pluma.
Apetecia-lhe vislumbrar as coisas, mas a espera era inquietante. Não gostava de esperas, elas eram angustiantes e lascivas, talvez entediantes. Ouvia das pessoas a mesma reclamação, chamavam-na de inconseqüente, impaciente, e era mesmo. Precipitava-se ao primeiro sinal de perigo, feria para não ser ferida, fugia, para não se sentir pressionada.
Seria ela a única dona de seu destino? Será que tudo que lhe acontecera até ali teria sido apenas por suas escolhas mal feitas, ou por hora ter se tornado prisioneira de uma liberdade ilusória?
Finalmente estava no estagio que pretendia alcançar, a dormência, a gentil sensação flutuante de estar livre de qualquer amarra, tudo parecia ocorrer em seu ritmo próprio, o vento ganhava voz e sorrisos.
Seu vestido era roupa, apenas para seu corpo, para o vento não passava de um tecido, de um obstáculo que teria que transpor pra chegar em seu destino final. Aquelas dobras eram transitórias, ao menor movimento do vento ou de Cecília elas se desfaziam por completo, sem marcas, sem rusgas.
Quem dera fosse livre como o vento, dona de seu destino, quem dera soubesse fazer as escolhas certas, quem dera não tivesse que fazer escolhas. Tudo parecia confuso e claro, não havia liberdade, apenas um simulacro dela. Mas por hora, Cecília estava feliz com seu vestido.
Por um momento pensou ouvir a voz de Otávio, sentiu suas mãos suando e um desconforto vertiginoso. Ele perguntava, - Para que faz isso, Cecília, não sei mais como posso te ajudar!
Ela só tinha vontade de rir, mas estava fraca demais para isso.



(fragmento de meu pretenso romance: "Sob o olhar de Cecília")

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O tapa de Príapo - Aumente seu pênis

O casal, apaixonado, trepava com mais estripulia que atriz pornô velha. Roupas de couro, chicotes, fantasias de Chiquinha e Chaves; descobriram que raspar a pílula de viagra e cheirar o pozinho azul, igual cocaína, reavivava os ânimos como se fosse a gloriosa primeira vez.

Certo dia, depois da maratona e da soneca, Flávia acordou com os gemidos de Antônio. Surpreendeu-se ao ver que o pênis continuava ereto.

- quer mais? – Enlaçou o peru com os dedos macios.

- tá doendo!... Resmungou o namorado. – parece que vai explodir de tão duro!...

A garota, assustada com a agonia do sofrimento, abocanhou o bichão, pensando em aliviar o amado com suas técnicas indianas. Trabalhou até ficar com a língua dormente.

- ai, deu câimbra no maxilar.

- que vou fazer? – Sofreu Antônio, a pressão do pênis o deixava louco.

Ela analisou o problema à luz do curso de enfermagem.

- é priaprismo. O sangue não sai do seu pau porque a válvula de contenção está inchada, certamente influenciada pelo viagra.

- meu pau vai cair?

- sim, se a gente não impedir a gangrena.

Os olhares se cruzaram, pesarosos, e depois miraram o pênis.

- pelo menos ele tá grandão. – Disse Antônio.

- parece que cresceu mesmo... – Ela o manipulou como uma cobaia. – tá mais musculoso...

A carícia excitou o rapaz, que injetou mais sangue no estufado membro.

- ai.... dói... pára de me dar tesão...

A garota, então, teve uma idéia.

- você não gosta de tesão? – Passou o dedo sobre a glande, escorregou pela base e agarrou o saco com as mãos em concha, aquecendo-o.

- ah...

- gosta, né?! – Umedeceu os lábios, roçando sensualmente a língua. Lambeu os dedos e os esfregou nos mamilos, fazendo-os apontar o céu. Abriu as pernas e a doce fragrância da vagina rosa atingiu o rapaz como um feitiço irrecusável. Sentiu-se no paraíso.

Um tapa! O barulho o atingiu antes da dor. O pau trombou contra o ventre, depois de ser atingido com toda a força pela namorada. Antônio nem conseguiu perguntar “por quê?” antes de desmaiar.

- acorde. – Pediu a moça. – o priaprismo acabou.

Antônio abriu os olhos e buscou suas intimidades. O pinto estava mole, finalmente. A dor havia sumido com o susto. Na segunda avaliação, porém, percebeu que estava diferente, mais escuro, maior.

- cresceu bastante. – Flávia o media satisfeita.

- é... inventamos um método real de crescimento peniano.

- ficaremos ricos! – Ela elocubrou um futuro promissor.

Antônio ficou calado. Parecia calcular uma equação dogmática.

- só há um problema: como explicaremos o tratamento? – Suspirou. – Não poderemos dizer que provocaremos priaprismo na piroca dos clientes quase até a amputação por gangrena.

- há. – Desdenhou. – vocês, homens tolos, são capazes de qualquer sacrifício para exibir um pauzão aos amigos.

Ele lembrou que nunca se envergonhara de ficar nu com mulheres, mas sempre se incomodara em vestiários masculinos. Viu no semblante da namorada que ela faria tudo para vender a fórmula. A idéia era boa, embora perigosa.

- certo. – Rendeu-se, acatando a sabedoria popular: quem gostava de pau grande eram os viados. As mulheres gostam é de grana. – vamos ficar ricos.