quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Convidada: Noga Lubcz Sklar

Segredo ou sagrado?

"Nunca aceitei esse ranço de obediência na relação do artista com as multinacionais. De eles saberem mais, de terem o poder de orientar. Eu sempre disse não, e eles sempre respeitavam esse não. Porque eu sempre fiz muito bem tudo o que quis."
Maria Betânia, imperdível, em entrevista ao Caderno Ela de O Globo


Na mesa de almoço em família comunico ao meu tio intelectual minha firme intenção de atacar o velho Ulisses, de James Joyce — um livro que é meu livro de cabaceira, ops, cabeceira, há mais de 5 anos* — nestas férias de fim-de-ano. Já tendo lido, com um prazer inenarrável (ui!), as primeiras cem páginas, não consigo entender as razões para ter hesitado tanto. Deve ser o marketing, ou no caso, o anti-marketing, confirmado por minhas jovens primas: é chato.
Mas, gente, se tem um adjetivo que não se aplica, de jeito nenhum, a esse ícone da literatura, é este. Chato? Pode ser incomum. Pode até ser meio difícil pra quem não tem o hábito da boa leitura, se limitando aos novos lançamentos, resenhados e elogiados por razões muitas vezes obscuras (pra não dizer comerciais, mesmo). Mas chato nunca. Instigante. Poético. Ousado. Isso sim. Nunca gratuito. A gente sente por trás dos neologismos, das citações, da ordem expressa das palavras, a clara intenção do escritor. Nada. Nada de preguiça de (re)escrever ou pressa de publicar. Por enquanto estou lendo, claro, a tradução de Antonio Houaiss. E por falta de opção melhor confiando nela, na erudição do tradutor, na compreensão ampla que ele teve do original, coisa que certamente eu jamais alcançarei. Porque meu passo seguinte, pasmem, é perscrutar o original que encomendei na Amazon. Que pretensão.
Com meu vício de folhear à frente, já deu pra perceber que quase tudo que a gente considera novo, transgressor e original na literatura contemporânea, já está lá, pasmem, há quase cem anos pra todo mundo ler. Meu romance Hierosgamos, por exemplo, tem trechos inteiros copiados dele, mas como, não sei. Deve ter sido por osmose, por "metempsicose" (metem-se o quê? - pág 85). Diz Augusto de Campos, na orelha da edição, que "a divulgação deste livro é capaz de contribuir, e muito, a curto e longo prazo, para o soerguimento qualitativo da nossa prosa que, salvo raras exceções, ainda não se apropriou do legado da revolução joyciana". Tá certo que a tradução é de 1966, ah, bom, muita coisa mudou desde então. Ou não?
O negócio é que apesar do Alan já ir me chamando de incompetente, ignorante, e me acusando de não saber grego e latim o suficiente para ler Ulisses, além de, claro, estar lendo uma "cópia", falsa e certamente malfeita — não me entendam mal: o homem me ama, mas me acha incompetente em inglês, enquanto em português, vocês sabem, não tem a mínima competência para me julgar: não fala uma palavra da nossa língua — decidi ler o Ulisses, por enquanto, com meus próprios recursos emocionais, sem me ligar em estudos, teorias, esmiucices redutoras. Pronto. Já deu pra entender tudo. Sou tão pretenciosa que (apesar de escrever "pretensiosa" com cê) me julgo à altura de Joyce quando o assunto é misturar idiomas, transgredir ritmos, criar palavras. Meu Deus. Melhor seria eu me calar, mas não me calo: a ignorância é a melhor proteção contra o julgamento alheio, ops: pretensão. Já deu pra ver que logo nas primeiras páginas Joyce me perdoou os dois pontos repetidos que eu repito sempre sem querer, depois vou com todo o cuidado revisando e apagando um por um. Podem crer. More on that later.
Porque agora vou falar de outra coisa, isto é, da ordem certa das coisas. A gente começa a ler Joyce e vai ao google, eu, pelo menos, vou, pra descobrir que o artista passou até fome enquanto escrevia o livro. Quem garantiu a sobrevivência — dele, da família dele, e do próprio livro — foi a editora francesa Sylvia Beach, conseguindo transcender as limitações de mercado que, na época, quase relegaram Ulisses à não-publicação. Imaginem. E isto a propósito de quê? Da discussão levantada por Luciano Trigo em seu blog, quanto às relações do artista com o mercado. O que eu penso é que foi sempre assim. Pelo menos do lado do mercado, é claro. Porque o artista é que nunca se curvou a ele. Nunca se pautou por sua carência de dinheiro, eu sei, eu sei, easier said than done: passe fome pra ver o que é bom. É o mercado que sustenta o artista, seja ele público ou privado, para seus próprios fins, e sempre foi assim. O porém disso tudo é que o artista sempre andou para o mercado, se é que vocês me entendem (falta aí uma palavra essencial que não pronuncio, por mera educação e respeito aos meus leitores mais "família"). Mas de uns muitos tempos para cá se convencionou acreditar que se o mercado não aceita um artista é porque o artista certamente não presta. E, gente, vou confessar: sou a primeira a acreditar nisso e, como corolário lógico, vou logo acreditando também que a minha arte não presta, embora existam — poucas. pouquíssimas, tá certo — evidências em contrário.
Chega-se enfim ao debate proposto por Nilton Bonder — em seu mais recente futuro best-seller de 135 páginas, nada a ver o número delas, tudo bem, só me impressionei ao ver o delgado livro ao vivo — entre o Segredo e o Sagrado, onde se conclui que o Segredo é o Mercado. E o Sagrado, bem, é o Mercado também. A não ser pra quem escolhe ficar fora dele: uma atitude nada contemporânea, porém, que se configura, cada vez mais, como a única possível para a salvação da arte. E do tal do espírito. Como bem diz nosso intrépido rabino, o que vale nesta vida está bem além da divisão simplista da raça humana em vencedores e perdedores, um maniqueísmo globalmente aceito e monitorado, como nunca antes, pela saúde da conta bancária. Ao criador, resta manter-se fora disso. Mas não me perguntem como.

*a bem da verdade, cumpre esclarecer: embora só agora esteja lendo o Ulisses pra valer, já li várias vezes o monólogo sexual final de Molly Bloom, e faço em meu livro uma louvação explícita dele, "bom demais pra agüentar o orgasmo, explodindo de sêmen fecundada por ti... sim, Noga, um grande, GIGANTESCO SIM."

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Noga Lubicz Sklar é escritora. Graduou-se como arquiteta e foi designer de jóias, móveis e objetos; desde 2004 se dedica exclusivamente à literatura. Hierosgamos - Diário de uma Sedução, lançado na FLIP 2007 pela Giz Editorial, é seu segundo livro publicado e seu primeiro romance. Tem vários artigos publicados nas áreas de culinária e comportamento. Atualmente Noga se dedica à crônica do cotidiano escrevendo diariamente em seu blog Noga Bloga.

Um comentário:

Fernando Maia Jr. disse...

Cara, que texto gostoso!

Tanta informalidade assim, tão bem tratada, tão pura e natural.

Gostei mesmo. Vc acertou no convidado (na convidada!) da vez, Gígio.

Aliás, esse espaço no blog traz sempre boas surpresas!

A Noga dá de graça pitadas de "erudição" na forma de feijão com arroz.

Pelo que vejo, quem come por meio da Noga come fácil e se alimenta muy bien!