sexta-feira, 6 de abril de 2007

O encontro (parte I)

O encontro (parte I)

Sig aproximou-se sem pressa, sem me olhar, veio devagar, contemplando as árvores rodeadas de flores e pedras do jardim da praça. Sentia-me estranha, lembrava-me da primeira vez que o vira, sentado na confeitaria, olhava-o como a um estrangeiro que acaba de chegar, tomada por um medo íntimo e curiosidade incontrolável. Era invadida agora pelo mesmo sentimento, queria sair correndo dali, sabia que se continuasse desejando-o daquela maneira, o dissabor e o desencanto seriam inevitáveis. A sombrinha e o vento pareciam cientes disso e me puxavam para traz, minhas anáguas estavam pesadas demais, nunca me sentira tão desconfortável e tão feliz. Uma saciedade que me fez fincar os saltos no chão, segurar o fôlego e ficar imóvel, até sermos apenas eu e ele em um olhar.
Quando finalmente chegou ao meu lado, ofereceu-me o braço esquerdo e eu entrelacei minhas mãos nele, sem nenhum cumprimento formal, começamos a caminhar rumo à Igreja de Votivkirche, num dia agradável, a primavera explodia em Viena, em todas as suas cores. Meu vestido, em harmonia com o cenário colorido, parecia dançar a cada passo que dava. Não sei bem explicar a sensação que tive, pela primeira vez, tudo soprava ao meu favor. Repleta de um afeto que, como o vento, tomava meus pensamentos desalinhando meus cabelos e fazendo um sorriso transbordar de minhas entranhas.
Percebi que uma mulher de meia idade nos observava, sentada em um banco, alimentava os pombos, mas não olhava para eles e sim para nós dois, balançando a cabeça, em um sinal negativo. De onde teria surgido aquela mulher, não estava ali, ou só a percebi pelo seu gesto repreensivo?
Antes de comentar com ele sobre a tal mulher, Sig disse:
_ Vamos pela sombra, querida, está muito calor! Concordei silenciosa e seguimos, confessei sentir-me incomodada pela maneira que aquela mulher me olhava.
_Não ligue, porque se incomoda com ela? Há tantas pessoas nos vendo, o mundo nos vela, estamos felizes e apenas por esse motivo, estaremos sempre sendo vigiados. Talvez por inveja, por curiosidade, todos querem o “elixir da satisfação” e não se conformam de ver outros desfrutando dele, despudoradamente como nós. Ri, quase sem jeito, na tentativa de esconder o contentamento que aquela frase me causara.
_Você é engraçado! Sendo assim, todos me incomodam, não quero ser observada, nem tão pouco invejada!
Aquilo não era verdade, gostava de ser invejada, como era bom estar ali com ele, e saber que tantos outros não tiveram o sabor da plenitude que eu sentia agora. Sig respondeu-me com aquele sorriso de canto de boca, que sempre dava, quando parecia deduzir sobre meus pensamentos mais profundos.
_Como queria ter seu discernimento, saber quando devo ser quem esperam que eu seja ou apenas ser quem sou. Seria mais fácil viver. A vida parece-me um simulacro, que cultivamos como se fosse real. Tantas conveniências e regras de conduta. Sinto-me caminhando sobre o fio de uma navalha, não vou me adaptar nunca! Faço tudo errado e todos os olhares me condenam. Posso dizer-te que a transgressão me agrada, mas depois vem o vazio, talvez por ter tão poucos pra compartilhar o que penso. Queria pode me isolar, a coexistência me faz mal, muitas vezes me sinto tão violada, que me oculto em mim para não explodir!
_Não vejo motivos para o isolamento total, nem para a adaptação arbitrária... – dizia ele, mas já estava presa a ele e à minha insegurança.
Será que Sig me compreendia? Se não houvesse motivos para a adaptação, para que viver em sociedade e porque nos conforta tanto estar em grupo? Não se tratava apenas de conviver e sim de tolerar. Nós dois já havíamos quebrado essa barreira, apetecia-nos mutuamente de nossa companhia, tínhamos noção do encantamento que exercíamos um sobre o outro. E ele tinha razão, o isolamento era algo impensável, inalcançável, depois de ter estado com ele. Um simples passeio, um encontro marcado era algo intocável, o nosso tempo era diferente, andávamos serenos e calmos, enquanto a humanidade corria.
O vento hora ou outra queria levar-me a sombrinha, mas o sol já estava alto, não poderia me dar ao luxo de fecha-la, as roupas eram pesadas, já não me sentia tão bem. O desejo era ficar mais com ele, diminuía o passo na esperança que o tempo seguisse meu ritmo. Uma menina arrancava as flores do jardim e destruía todas as pétalas e ria, orgulhosa de seu feito, cada rosa despedaçada causava-lhe uma gargalhada plena.
_Encanta-me o “Toque de Midas” invertido que o ser humano tem, transforma em dejeto, tudo o que toca. Vejo-me naquela menina, inocente, que despedaça flores, devasta sonhos, acaba com a vida dos outros e sorri. E seu sorriso, compra tudo!
_Alguns acreditam no mito da Fênix, minha querida! Da devastação brota o renascimento!
_É uma maneira de interpretar, mas apavoro-me com essa possibilidade, reconstrução a partir da destruição. E parece servir-me como uma luva em relação àquela mulher, que vimos há pouco, por vezes sou como ela. Sinto-me opressora, quero reprimir, destruir a dicotomia e impor a ditadura de minha anarquia pessoal. Sei que meus parâmetros são equivocados, que minhas teorias são falhas, mas mesmo assim necessito de aprovação e se não tenho quero fuzilar meu oponente.
_Não há como estabelecer parâmetros perfeitos, por isso tentamos seguir ou transgredir algum modelo pré-estabelecido e sem esses modelos muitos se sentem perdidos.
_Por isso digo que a realidade é um simulacro, temos que seguir a idéia estabelecida e não nossa intuição. É tão claro para mim, que o homem e a natureza não andam assim de braços dados como nós dois! Como é evidente que a relação entre o homem e a natureza seja o mesmo dos amantes. Como o homem busca a destruição de si e de tudo que o rodeia, a natureza tenta sobreviver a ele. O amor também destrói, enquanto um que busca a destruição de tudo o que o rodeia, o outro que tenta sobreviver ao amor que sente e ao ser amado.
_A única certeza que tenho, -dizia Sig- é que o amor é um estágio da loucura.
Rimos muito depois da afirmação, mas logo o silêncio dedutivo me tocou.
_ Se o amor é insanidade, meu querido, o ódio é uma sanidade? Seria mais lúcido quem ama ou quem odeia?
Sig continuou calado, com os olhos presos no horizonte, parecia intrigado com o cunho da pergunta, puxou o cordão preso em sua casaca e abriu o relógio dizendo:
_Querida, já passa do meio dia, tenho trabalho por fazer, amanhã nos veremos aqui, no mesmo horário. Beijou-me a palma da mão, puxando-me ao seu encontro, pensei num provável primeiro beijo, mas apenas sussurrou-me ao ouvido:
_Odeie, não há insanidade no ódio, amar sim, é uma debilidade temporária. Mesmo desapontando-me com duras palavras, tocar sua face, a barba por fazer, fez-me arder as vísceras e a face. Saiu com o passo apressado, quase desesperado.
Passarei na confeitaria, será o álibi perfeito se minha mãe me perguntasse sobre mais uma manhã perdida, passaria também no armarinho, pois haveriam de ter chegado novas linhas de seda, perfeitas para as aulas de bordado rococó com Dona Milu.
Pobre Dona Milu, pobre mamãe! Vítimas de meu ódio íntimo. Tão inocentes!
Embora tivesse certeza que eu era a vítima maior. Pobre de mim, que amo Sig e sei que a letra “S” jamais será bordada nos monogramas de meu enxoval.


RESPEITE OS DIREITOS AUTORAIS E A PROPRIEDADE INTELECTUAL Copyright © 2006. É proibida a venda ou reprodução de qualquer parte do conteúdo deste site. Este texto está protegido por direitos autorais. A cópia não autorizada implica penalidades previstas na Lei 9.610/98.

9 comentários:

Larissa Marques - LM@rq disse...

Peço desculpas se houver algo do texto fora do lugar, não consegui colar exatamento como no texto no word, devido ao meu pouco conhecimento sobre informática.
Sobre o texto, é uma série, constituída de 3 partes, resolvi postar a primeira, pois é a mais independente. E confesso-me mais insegura que o primeiro texto de prosa, postado aqui.

Deveras disse...

Bom, como você disse que a primeira parte de três, vou esperar o restante da estória para poder avaliar melhor. Mas até onde vi de seu primeiro trabalho fora da poesia, achei-o intrigante; um tanto por ser o primeiro conto que vejo teu, segundo por que vislumbrei um què de Flaubert no texto... (acho que foram as anáguas, a sobrinha e a catedral que me levaram a isso, sem contar o jeito alinhavado do texto)

Mas uma pontada de traição já se esboça aí...

ficanapaz

Larissa Marques - LM@rq disse...

Meu outro texto postado aqui também era prosa, Eduardo.

Eduardo Perrone disse...

Parâmetros, conceitos e formatações. Boa descrição destes impactos.

Deveras disse...

Corretíssimo Larissa, grande vacilo meu... Sua primeira postagem aqui realmente foi um conto!

Mas aproveitando, fui eu quem disse, não o Edu Perrone, hehehe

Perdón pelo erro, meu parachoques e ficanapaz!

ofilhodoblues disse...

Achei o diálogo interessantíssimo, bem como os pensamentos e os conflitos interior da personagem... mto bem descrito e conduzido. Também esperarei as outras partes...

Klotz disse...

Interessante (parte 1)

Larissa Marques - LM@rq disse...

As outras partes estão disponíveis no:
www.larissamarques.com

Muryel De Zôppa disse...

parte 2, urgente!!! ainda me surpreendo contigo.